O grande lance de Ledy


22/07/2010


“A primeira coisa que deve entrar nessa matéria é um registro de agradecimento. Ela não pode começar sem que eu destaque os nomes de três pessoas que me ajudaram muito: Wilson de Oliveira, Maurílio Ferreira e Mário Vale.” Atendida a recomendação inicial, segue o texto sobre Ledy Mendes Gonzales, pioneira na cobertura de leilões e na descrição de disputados lances. Ela nos recebeu em seu apartamento, próximo ao Largo do Machado, Zona Sul do Rio, para uma entrevista repleta de lembranças. De emoção legítima e, por vezes, desconcertante.
 
O ponto de partida é o ano de 1962. Capixaba de Vitória, Ledy enfrentava um momento difícil na vida particular. Separava-se do marido, então mergulhado no alcoolismo. Já com quatro filhos – uma ‘escadinha’, como diz – partiu em busca de emprego. A primeira tentativa não foi animadora.
 
“Fui fazer um teste numa loja da Praia de Botafogo, a Sears, após ver um anúncio no jornal. A moça pediu que eu fizesse contas básicas de primário. Travei e não consegui fazer nada. Sofri uma espécie de bloqueio. Lidar com números é uma dificuldade enorme pra mim, ainda mais numa situação de pressão! Bom, lá fiquei eu, uns 15 minutos, tentando. E não consegui”, recorda, esclarecendo que nos milhares de matérias sobre leilões que viria a fazer nos anos seguintes somente informava preços e avaliações. Não sofria com os cálculos.
 
Frustrada a primeira investida, um conselho materno a levou a procurar um primo, com o qual não mantinha relações próximas. Mas Gilberto, representante do lado mais abastado da família, trabalhava no Ministério da Fazenda. Além disso, era bem relacionado. Tinha contatos.
 
“Ok, vamos te arranjar um emprego. Mas o que você sabe fazer?”, perguntou. Sem formação específica, mas desde cedo com gosto pela leitura e escrita, Ledy estava disposta a escrever. Sobre qualquer coisa. E em qualquer lugar. “Desde garota eu era apaixonada por livros. Já tinha enviado matérias para O Jornal, participado de concursos de poesia, um monte de coisas… Mas não passava pela minha cabeça atuar diretamente no jornalismo. Era demais pra mim…”, conta.
 
Cerca de 15 dias após esse encontro, quando já começava a procurar outras alternativas no mercado, Ledy recebe um telegrama em sua casa, em Nova Iguaçu. “Favor apresentar-se no Jornal do Commercio, na Redação e coisa e tal. Fiquei doida! Eu nunca tinha visto o JC, nem sabia que existia. Me arrumei direitinho e fui lá, na Rua Sacadura Cabral.” Foi recebida pelo Chefe de Redação na época, Wilson de Oliveira. No entanto, terminou por não iniciar a carreira jornalística naquele momento. Uma tentativa de reatar a relação com o marido, que durou apenas mais dois anos, a fez suspender temporariamente a busca por um meio próprio de sobrevivência.
 
Casamento definitivamente desfeito, Ledy Gonzales bate novamente à porta do Jornal do Commercio, em 1964.
 
“Na primeira visita, dois anos antes, fiquei com vergonha de dizer para o Dr. Wilson que eu não ficaria, pois ele me recebera tão bem… Mas, mais uma vez, minha mãe recomendou que eu voltasse lá, que não custava nada tentar. Lembro que eu estava completando 30 anos. Entrei na Redação nervosíssima. Estava magrinha, frágil por causa do impacto da separação. O Dr. Wilson estava lá, com o charutinho dele, reunido com umas pessoas”.
 
Ela aguardou um pouco, até que todos saíssem. E, então, se aproximou.
 
“Não sei se o senhor lembra de mim, estive aqui há dois anos…”
 
“Claro que me lembro! Você não é a menina que estava procurando emprego, tem quatro
filhos e mora em Nova Iguaçu? E agora? Veio pra trabalhar?”
 
“Bem, eu quero tentar, né? Quando posso começar?”
 
“Agora mesmo!”, disse Wilson de Oliveira.
 
Acomodada diante de uma robusta Remington, daquelas que pareciam pesar algumas toneladas, Ledy recebeu um monte de releases sobre peças de teatro e alguns assuntos tipicamente femininos.
 
“Isso é pra entrar na coluna da atriz Luiza Barreto Leite. Olha a responsabilidade!”, recomendou Wilson.
 
“Eu comecei a escrever, sabendo que aqueles homens da Redação estavam me olhando… Havia, naquele tempo, apenas duas meninas na equipe do JC, se não me engano. A Rosa Cass, que deve estar batalhando por aí, e a Sônia Coutinho, que se tornou escritora. Eu escrevia, achava ruim, e jogava tudo na cestinha de lixo”.
 
Neste momento do papo, a emoção toma conta de Ledy.
 
“Aquela Redação era uma festa! Minha escola foi a Redação do Jornal do Commercio! Eu não tinha a menor condição de ser jornalista. Mas todos eles me ajudaram, eram como uma família. Não havia a disputa pelo poder que vemos hoje. Todos eram colaborativos, em especial os três que citei. Eles me ajudaram, me aturaram. O Wilson de Oliveira! Quem trabalhou com ele não esquece… Uma vez, me pediu uma matéria sobre o Carlos Lacerda, e me fez reescrever tudo sete vezes. Sete vezes! Fazia de novo, mostrava a ele e…”
 
“Não tá bom ainda. Você pode fazer melhor, Ledy”, salientava.
 
“O Mário Vale, Secretário de Redação do JC, às vezes passava meia hora me orientando, me indicando leituras, mostrando jornais. Maurílio Ferreira, também Secretário e que hoje está na ABI, foi como um pai pra mim. Um companheiro 100%. A gente trocava informações, conversava muito. Ele me dava conselhos. O jornal não me registrou logo de cara, pois não tinha vaga. O quadro estava completo. Era preciso sair algum repórter para entrar outro… Só em abril de 1966 é que eu fui efetivada”, recorda Ledy, em meio a lágrimas.
 
Alguns meses depois, e já com alguma bagagem e experiência, Ledy é atirada aos leões. Isto é, enfim, vai às ruas.
 
“Minha primeira matéria foi uma reunião de negócios, num prédio bem na Rio Branco. O Fernando Gabeira sentou-se ao meu lado, era repórter do Jornal do Brasil. Logo depois, fiz elogiada reportagem com crianças que viviam na Cinelândia, pedindo dinheiro nos restaurantes. Não eram pivetes, não! Eram crianças abandonadas. Foi difícil eu terminar a entrevista, pois comecei a chorar. Queria levar aqueles meninos pra minha casa, cuidar deles”, diz.
 
Outra matéria, com Vicente Galliez, importante empresário que estava à frente da Federação do Comércio e Indústria, arranca risos de Ledy Mendes.
 
“A entrevista corria bem, com ele falando o básico. Até que fiz uma pergunta a que, Vicente frisou, ele responderia em off. E eu lá sabia o que era isso? Aí, ele disse um monte de coisas, meteu o pau no Governo. E eu lá, anotando tudo… Até que, percebendo que eu copiava, brigou comigo e me colocou pra fora da sala, por eu não respeitar o acordo”, ri.
 
Antes de ingressar na cobertura de leilões, Ledy correu muito pelas ruas do Rio, cobrindo pronunciamentos de Vladimir Palmeira e José Dirceu, líderes do movimento estudantil.
 
“Adorava fazer essas coberturas. Uma vez, em Copacabana, tive que me esconder. Outra vez, na Lapa, onde é hoje a Associação Cristã de Moços, um estudante fazia o discurso e a Polícia veio cercando tudo, dos dois lados. Quando percebi, eu estava rodeada por policiais. Os meninos repórteres logo quebraram um vidro e se esconderam no porão de um prédio vizinho. E eu, de saia, salto alto, não fui. Gritei: ‘Sou da imprensa, sou jornalista e estou trabalhando!’. E saí com o bloco de anotações em riste, no alto da mão, em meio aos policiais, com um medo danado de levar uma cacetada… Aquele bloco foi a minha arma”.
 
A cobertura na área de literatura, onde também atuou, rendeu a Ledy diversas visitas à Academia Brasileira de Letras-ABL. E um elogio do escritor José Américo de Almeida.
 
“O Moacir Padilha, diretor do Jornal do Commercio, certa vez, me chamou à sala dele. E lá fui eu, preocupada com o quê eu poderia ter feito de errado. E me entregou uma carta, endereçada a ele próprio, mas que seria, na verdade, pra mim. Era do José Américo, que disputava uma vaga na ABL, para a qual acabou sendo eleito. Na carta, ele perguntava quem era eu, que ele não conhecia, e fazia altos elogios à minha reportagem que tratava da sucessão entre os acadêmicos”, conta Ledy.
 
Finalmente, a cobertura de leilões começou aos poucos, meio que por acaso. Já naquela época o Jornal do Commercio era o único a abrir espaço para esse mercado.
 
“Certa vez, fui cobrir o leilão de uma escola no subúrbio. O proprietário tinha morrido, e a família queria vender o imóvel. O leilão era feito pelo Ernâni Melo, e vi um cara esquisito na área. Fiquei sabendo que era o Zica, conhecido como o Barão do Cais. Manuel da Silva Abreu, o Zica, era um contraventor famoso por suas manobras financeiras ilegais e pela grande fortuna. Criara um esquema do contrabando, sobretudo de produtos como bebidas, charutos, perfumes, cigarros e sapatos. Poderoso, temido e rico, era figurinha fácil no mercado imobiliário. E freqüentador de leilões.”
 
“No dia marcado apareceu uma mulher com duas meninas. O Ernâni começou lembrando que aquela seria a segunda tentativa, por isso o lance mínimo partia de 50% do valor do imóvel. E descreveu a casa: disse que ali funcionava uma escola para carentes que, com a venda, deixaria de atender àquelas crianças. Começou o leilão, com o lance baixíssimo. E, é claro, havia muitos interessados. Digamos que a avaliação fosse de R$ 60 mil, mas venderiam a partir de R$ 30 mil. Aí essa senhora bancou os R$ 30 mil! Ernâni perguntou se alguém daria mais. Silêncio absoluto! Ninguém abriu a boca. O Zica tinha feito um sinal de acordo. A mulher o representava. Como era poderoso, ninguém quis afrontá-lo. Então, o lance mínimo foi confirmado e a casa prosseguiu funcionando como escola. Na verdade, ali, o contraventor foi o personagem bom da história. E todo mundo aplaudiu”, relata, emocionando-se mais uma vez.
Em pouco tempo Ledy apaixonou-se por leilões. “Me lembro do primeiro leilão de arte, também do Ernâni, com uma coleção de um multimilionário, uma coisa que não existe mais, com porcelanas, armas e armaduras. Então, propus ao Wilson de Oliveira a criação de uma coluna no Jornal do Commercio só sobre leilões, que o jornal já cobria de forma rotineira. Ele topou e eu, entusiasmada, caí logo em campo. Saí entrevistando leiloeiros. Apresentei meu material e o pessoal da Redação, surpreso, disse que aquilo não daria uma coluna, mas sim uma página inteira! E assim foi feito. Isso foi em março de 1969. Ou seja, há 41 anos!”, conta, orgulhosa.
 
A partir dessa data e até 2003, Ledy publicou suas matérias no JC em variados formatos. Ajudou a batizar e tornar famosos alguns espaços de leilões da cidade, como o Palacete Rosa e o Solar do Barreto. Colaborou para o reconhecimento de inúmeros artistas, como Sylvio Pinto.
 
“Ele era um pintor desacreditado, que pagava até comida com seus quadros. Ninguém falava nele. Mas a gente chamou a atenção para seu talento e trouxe parte do merecido reconhecimento para ele e outros. E algumas pessoas me criticavam justamente porque eu falava de muita gente nova, que ninguém conhecia. Eu respondia: de que adianta falar de Di Cavalcânti? Esse já é badalado”.
 
Sua saída do JC, acredita Ledy, teve relação direta com a morte de Ibanor Tartarotti, que era presidente do jornal. “Logo depois que ele morreu, em fevereiro de 2003, fui dispensada. Mais do que patrão, ele era meu amigo e admirador do meu trabalho”.
 
Em décadas de atuação, a cobertura sobre leilões atraiu anunciantes e ajudou a consolidar a imagem do veículo. Mas Ledy lamenta que, por vezes, para não gerar queixas dos leiloeiros ou problemas para a direção do jornal, tenha deixado de publicar saborosas informações de bastidores, como negociações suspeitas ou acirradas disputas familiares.
 
No jornal Monitor Mercantil, onde assina a coluna Leilão & Companhia desde 2005, ela ampliou um pouco o foco de suas reportagens.
 
“Há leilões muito emocionantes, que são verdadeiros duelos. No Monitor eu quis traduzir isso. Não falo só do bem em jogo, ou da peça em disputa. Lá atrás, em primeiro lugar, abri espaço para os leiloeiros, transformei-os em personagens, trouxe-os para dentro das matérias. Até então, eles sequer eram citados. Parecia que o leilão acontecia num passe de mágica. Hoje, passei a contar, por exemplo, a história do imóvel em leilão, o seu valor histórico. A importância de determinada peça…”.
 
O traço mais marcante de Ledy, enquanto entrevistada, é a generosidade na descrição dos personagens, dos colegas feitos em décadas de jornalismo. Interlocutora emocionante, ela era, acima de tudo, uma jornalista emocionada.
 
“Sempre fui assim. Sempre mergulhei nas histórias, me emocionei. Sou uma chorona… Até recusei certos trabalhos pelo fato de não terem nada a ver comigo. Por exemplo, tinha vontade de fazer publicidade. Mas, quando fui para a Artplan, o trabalho me decepcionou um pouco, sabe? Era difícil me emocionar escrevendo sobre produtos de cabelo… Não tinha clima…”, acha graça.
 
O segredo para tornar-se referência de cobertura jornalística na área de leilões, acredita, foi a total identificação com o tema.
 
“Eu me identifiquei com a arte, primeiramente via leilões, e depois com os próprios artistas. Visitava as galerias. Hoje é que estou um pouco cansadinha”, diz Ledy, que produz sua coluna para o Monitor Mercantil, publicada sempre às quintas, de casa mesmo. Tal fato, apesar de ser uma opção confortável, a faz lamentar a perda de contato estreito com os companheiros de Redação.
 
Autora de três livros – Como matar seu marido; Bom Dia, Cascais e Os Vários Perfis da Arte Brasileira – Ledy Gonzales chegou a atuar na assessoria da Sunab e a vender algumas peças, sempre a pedido de amigos. Hoje, vê o filho Alexandre Mendes Gonzales seguir com êxito a carreira de leiloeiro – e, nisso, jura que não há influência direta de sua parte. É justamente entre os profissionais do setor que a experiente jornalista coleciona amigos, como o falecido Sebastião Barreto. Alguns fazem questão de destacar o pioneirismo e a singularidade do seu trabalho.
 
“Ledy é muito interessada, por isso conquistou a simpatia da maioria dos leiloeiros, e não só no Rio, pois participou de congressos nacionais. E procurava ajudar, principalmente, às pessoas que estavam começando”, descreve Norma Machado.
 
“Conheço-a há mais de 30 anos, eu sequer era leiloeira ainda. E seu trabalho de divulgação já era de importância notável. Por isso, continuo acompanhando sua coluna, agora no Monitor Mercantil. Ela não perde o entusiasmo”, aponta Silvani Lopes.
 
“Ela é uma grande incentivadora das artes, amiga dos leiloeiros, uma batalhadora, pessoa extremamente gentil. Durante muito tempo, foi referência no Jornal do Commercio para todo o mercado de arte”, considera Teresa Brame. “É notável o seu interesse pelas artes, a sua sensibilidade, fundamental para alguém que exerce esse trabalho. Ledy Gonzales ajuda a divulgar a arte, segmento que não tem visibilidade, e nem profundidade nas coberturas, pois não há jornalistas especializados. Ela redige bem. E sabe do que fala”, elogia Valdir Teixeira.
 
É com serenidade que Ledy vê, ao menos, um seguidor de seu trabalho. Com a habitual generosidade, tece elogios a seu substituto na antiga casa, o Jornal do Commercio. Aqui, mais uma vez, enche os olhos d´água. “Hoje quem assina essa página de leilões do JC é o José Pinheiro Jr. Conheci o pai dele, era contínuo do jornal… Zezinho, como nós o chamávamos, era meu amigo. Um homem ótimo, simples, e que desejava um futuro melhor para os filhos. Hoje, justamente seu filho é quem me sucede no JC. Ele ainda está tateando… Mas José Pinheiro Jr. já começa a ganhar um estilo próprio. Ele vai longe…”, prevê, com indisfarçável sentimento de torcida em favor do sucesso do colega.

* Paulo Chico é colaborador do Jornal da ABI.