O artista brasileiro que conquistou Nova York


13/06/2012


Gutemberg Monteiro Farias Lemos é um baixinho modesto que, aos 16 anos de idade, saiu de Carangola (MG) para tentar a sorte no Rio, trazendo na bagagem o dom para o desenho que o transformou em um gigante das histórias em quadrinhos. Quando jovem ele queria mesmo era ser jogador de futebol. Quem o viu jogar diz que ele, apesar do pequeno porte, jogava bem e poderia ter sido um craque com a bola nos pés. Porém, a dificuldade para conquistar uma vaga no time juvenil do Flamengo, devido à sua estatura, mudou a sua trajetória.
 
 
O futebol, então, passou a ser apenas um hobby na vida de Gutemberg ― ou Mr. Goott, como era chamado carinhosamente nos Estados Unidos ―, que diz se sentir realizado com a escolha que fez pela carreira de desenhista. E graças ao talento para o uso do lápis e do pincel ele, literalmente, trocou os pés pelas mãos e transformou-se num ícone da arte brasileira de prestígio internacional.
 
 
Em 4 de dezembro deste ano Gutemberg estará completando 96 anos de idade. Com mais de 60 anos de atividade artística ― começou como ilustrador de capa de revistas, na década de 1940 ―, o artista conquistou o reconhecimento da crítica devido ao estilo peculiar que criou para desenhar personagens famosos das histórias em quadrinhos, como Tom e Jerry.
 
 
O fato de ter se tornado um artista famoso não tirou Gutemberg do conforto da sua simplicidade. Avesso à badalação, depois que retornou dos Estados Unidos ― onde morou durante 40 anos, trabalhando para publicações, agências de publicidade e os estúdios Hanna-Barbera e Harvey ― vive quietinho com a família em uma casa num subúrbio do Rio.
 
 
Apesar da mineirice se o assunto é desenho e futebol Gutemberg se sente à vontade e não dispensa “um dedo de prosa”. E foi assim, num clima de bom humor, como o espírito do seu próprio personagem, que ele encontrou-se com familiares, amigos, cartunistas e jornalistas na sede da ABI, no Centro do Rio, na sexta-feira, 6 de junho, onde falou sobre a sua trajetória.
 
 
Na realidade, o encontro foi uma homenagem adornada por uma exposição de alguns dos seus mais importantes trabalhos, como as capas que ele criou para as revistas Globo Juvenil, X-9 e Meia Noite, seguida de um de um bate-papo informal com os convidados no Auditório Oscar Guanabarino, localizado no 9º andar do prédio da ABI.
 
 
Além da presença de antigos companheiros de Gutemberg, como os desenhistas Benício, Nilton Ramalho, José Menezes e Walmir Amaral, o evento contou, também, com a participação do Presidente da ABI, Maurício Azêdo, e do ex-Ministro e associado da Casa, Bernardo Cabral. Os Conselheiros Cecília Costa Junqueira, Alcyr Cavalcanti, Fichel Davit Chargel e Sérgio Caldieri também compareceram para prestigiar Gutemberg.
 
 
O editor de Arte do Jornal da ABI, Francisco Ucha, idealizador da homenagem a Gutemberg, disse que a  motivação para essa atitude foi o fato de considerar o artista a inspiração de toda uma geração de desenhistas no Brasil.
 
 
Ucha disse que Goot é uma espécie de “pai de todos os desenhistas brasileiros”, desde o tempo em que iniciou sua carreira na Editora Ebal, de Adolpho Aizen:
— Foram quase 20 anos trabalhando e formando desenhistas, como um dos primeiros a fazer parte da equipe do Globo Juvenil. Ele é a base dessa turma toda. É por isso temos que prestar essa homenagem a ele, em vida, e aos seus contemporâneos, como Benício e outros integrantes dessa turma, disse o editor e curador da exposição.
 
 
Goott abriu o caminho para muitos dos desenhistas da sua época e também para os que vieram depois dele, observa Ucha destacando que o mais interessante é que ele, aos 50 anos, decidiu se mudar para os Estados Unidos, sem conhecer uma palavra em inglês, para trabalhar nos maiores estúdios norte-americanos, fazendo obras memoráveis, por cerca de 40 anos. “Isso não é para qualquer um. É uma história de vida fantástica”, declarou o Ucha.
 
 
Transformação
 
 
Há muito tempo os desenhos de Goott não eram exibidos, publicamente, em uma mostra no Brasil. Na ABI, a última vez que o artista expôs seus trabalhos foi em 2001, a convite do então Diretor de Assistência Social, Domingos Meirelles.
 
 
Em 2007, Goott foi agraciado com uma mostra especial pelo Sindicato dos Jornalistas do Município do Rio de Janeiro, que reuniu ilustrações, além de caricaturas, pinturas em óleo e desenhos dos heróis dos quadrinhos.
 
 
Goott iniciou sua carreira como ilustrador das capas do Suplemento Juvenil, publicado pela Editora Brasil-América Limitada (Ebal), fundada por Adolfo Aizen, em 1945, período em que o desenho no Brasil sofria grande influência de artistas norte-americanos.
 
 
Segundo críticos de arte, essa influência podia ser notada no trabalho de André Le Blanc, Nico Rosso, Ivan Wash Rodrigues, entre outros artistas que desenhavam para as publicações Edições Maravilhosas, Grandes Figuras do Brasil, História do Brasil e Epopéia, editadas pela Ebal nos anos 40.  
 
 
Quando Goott ingressou na Ebal, criou um estilo próprio de desenhar as capas e os personagens das historinhas das revistas, que, segundo os críticos, ajudou a destacar a produção artística nacional. Começava, assim, uma nova fase do desenho artístico no Brasil e na vida de Goott, que se consagrou como um dos principais ilustradores e desenhistas da Rio Gráfica Editora e da Editora Globo, de Roberto Marinho. Não demorou muito, em decorrência do padrão artístico dos seus desenhos, foi convidado para trabalhar nos Estados Unidos, para onde se transferiu em 1964. 
 
 
Em pouco tempo o artista conquistou Nova York, onde foi muito requisitado para desenhar personagens famosos de histórias em quadrinhos, como Super-Homem, Riquinho, Flash Gordon, Mandrake, Capitão América, Gasparzinho e Dick Trace, além de Tom e Jerry já citados no começo desta matéria. Só não ficou rico nos Estados Unidos porque, como diz o amigo Ziraldo “é humildemente humilde” e não soube se impôr ao capitalismo norte-americano.
 
 
Como ele próprio contou, passou um bom tempo desenhando para grandes estúdios, que lhe davam um salário aquém do seu talento e do valor de mercado que se pagava à época pela ilustração de uma página:
— Não sou ambicioso, devo aos amigos as exposições que faço dos meus desenhos e pinturas. Mas dei sorte, porque o que me projetou nos Estados Unidos foi exatamente uma técnica própria, bem brasileira, de desenhar e pintar que ninguém lá fora conseguiu até hoje imitar, disse Goott ao ABI Online recordando o período que morou em Nova York.
 
 
“Inimitável”
 
 
Quando Goott diz que nenhum desenhista conseguiu imitar o seu traço não se trata de falsa modéstia, pois é a pura verdade. Seu traço é inigualável, a tal ponto que uma vez ele interrompeu o seu trabalho nos estúdios Hanna-Barbera, que contrataram um desenhista argentino para lhe substituir nas histórias em quadrinhos de Tom e Jerry.
 
 
A tentativa foi frustrada e não deu certo, porque o artista portenho não conseguiu imitar o traço de Goott, e a decisão dos donos do estúdio foi deixar de produzir as tirinhas com os personagens que eram desenhados pelo brasileiro:
— O estilo do argentino não era ruim, mas não se comparava ao meu e eles resolveram parar de publicar as histórias de Tom e Jerry, que sumiram dos jornais e revistas e ficaram somente sendo exibidas na televisão e no cinema, disse o artista que cuidou dos quadrinhos de Tom e Jerry durante 16 anos e revelou que estes foram os personagens mais interessantes da sua carreira.
 
 
Tanta coisa boa aconteceu na vida de Goott no tempo em que ele morou em Nova York, que segundo ele “seria difícil enumerá-las”. Mas lembrou do tempo em que passou desenhando caricaturas de políticos norte-americanos e foi convidado pela então primeira-dama Barbara Bush para visitar a Casa Branca, em Washington:
— São coisas como estas que me deixam maravilhosamente feliz. Outra grande satisfação que eu tenho vem do tempo em que eu era professor de cartum numa escola nos Estados Unidos e recebi um convite para me transferir para outra instituição. Os alunos ficaram sabendo e me enviaram diversas cartas pedindo para que eu não fosse embora, declarou.  
 
 
Goott foi convidado pelos norte-americanos para desenhar os personagens Batman e Capitão América. Quando terminou seu primeiro contrato, pediram que continuasse e assumisse os desenhos do Super-Homem e de Dick Trace. Daí em diante, passou a ser requisitado também para ilustrar de anúncios publicitários:
— Trabalhei em diversos estúdios de publicidade, e tenho a satisfação de dizer que o meu trabalho só os fez crescer. Alguns desses estúdios tiveram prejuízos com a minha saída, disse o desenhista.
 
 
É por essa razão que ele diz que se sente seguro em afirmar que está realizado profissionalmente:
— Fiz a escolha certa. Deus fez de mim tudo o que ele quis, eu é que acho que não fui suficientemente inteligente para ir além do ponto que eu cheguei. Mas me dei muito bem e me sinto realizado profissionalmente e artisticamente. É maravilhoso! Eu não esperava que isso acontecesse na minha vida, disse o artista.
 
 
Fantástico
 
 
“O Goott é uma espécie de instituição para todos nós desenhistas e cartunistas que começamos a aparecer nos anos 40. Ele é um ponto de referência que direcionou toda uma geração de artistas”, disse o cartunista Adail, que não chegou a trabalhar com o desenhista, mas é um grande admirador dos seus desenhos.
 
 
No meio artístico Goott é considerado um desenhista completo, cujo traço ultrapassa qualquer convenção de estilística, justamente porque teve que desenhar todos os estilos nos estúdios em que trabalhou, desde os super-heróis até os personagens dos quadrinhos como Gasparzinho, Bolota, Brasinha, Tininha, entre outros:
— Trata-se de um trabalho que extrapola essa questão do estilo, pois além de fazer o seu próprio trabalho ele fez com maestria o dos outros. Isso é fantástico, disse o cartunista Zé Roberto.
 
 
“O Gutemberg é uma pessoa fantástica que viveu muitas épocas e continua vivo para que a gente possa apreciá-lo. É uma honra conhecer uma pessoa como ele”, declarou o cartunista Otta, que também esteve na ABI para prestigiar o veterano artista.
 
 
O repórter-fotográfico e cinematográfico Iarle Goulart, amigo de Goot de longa data, lamentou o fato de o desenhista só vir a ser conhecido no Brasil a partir dos anos 90:
— No Brasil ninguém conhecia Gutemberg Monteiro, apesar de nos Estados Unidos ele ser um artista muito famoso. Mas isso se deve à sua simplicidade. Se ele fosse uma figura que gostasse de aparecer e badalar seria uma personalidade famosa dentro do seu próprio País, observou Iarle.
 
 
Homenagens
 
 
Já o desenhista José Menezes, que veio de Petrópolis exclusivamente para cumprimentar o antigo companheiro, com quem trabalhou na Rio Gráfica Editora, fez questão de ressaltar o lado humano de Goott:
— Eu só tenho a dizer que Gutemberg foi amigo, companheiro e orientador de todos os desenhistas que chegavam para trabalhar na Rio Gráfica. Ele nunca se negou a nos ajudar, a dar suas sugestões nos desenhos que fazíamos, afirmou Menezes.
 
 
Ao se referir à Rio Gráfica, Menezes disse que a editora mereceria um registro na história do universo artístico no Brasil:
— É possível que se escrevam livros falando sobre outras editoras, mas sem dúvida alguma a Rio Gráfica foi o grande celeiro de desenhistas. O prédio onde estava instalada deveria contemplar duas de suas colunas com as figuras do Gutemberg e do Lutz, pois esses dois lançaram a semente que veio gerar, nos anos 50, a Rio Gráfica Editora, afirmou.
 
 
Menezes manifestou a sua felicidade por ter tido a oportunidade de reencontrar-se com Goott na ABI, onde participou de uma exposição retrospectiva em homenagem ao artista, juntamente com os ilustradores Walmir Amaral, Benício e Nilton Ramalho:
— O que mais nos enaltece é ver ainda o nosso companheiro firme recebendo essa nova homenagem que nós estamos agora vivendo e prestando a ele, declarou Menezes.
 
 
Benício também foi um dos desenhistas que começaram a carreira na Rio Gráfica e tiveram a grata oportunidade de trabalhar com Goott, que segundo ele foi quem lhe deu os primeiros ensinamentos sobre ilustração.
 
 
Benício disse que não era um ensinamento didático, mas uma orientação que se desenvolvia por meio da presença, da conversa e do exemplo. Ele agradeceu ao amigo os ensinamentos que recebeu:
— Muito mais do que lhe escutar a gente tem gravado no nosso coração a nossa mocidade. Tudo o que nós pudemos absorver do seu conhecimento naquele tempo, absorvemos. Estamos aqui hoje desenhistas semi-consagrados e super-felizes lhe homenageando nessa festa bonita que você tanto merece, declarou Benício.   
 
 
A visão sobre o espírito de colaboração de Gutemberg é compartilhado por todos os desenhistas que trabalharam com ele, entre os quais Nilton Ramalho:
— Ele foi um exemplo, porque além de ser um grande artista é um grande companheiro, amigo. Por isso, eu parabenizo a ABI por essa homenagem ao nosso grande Goott, disse Ramalho.
 
 
Walmir Amaral disse que aprendeu a desenhar com dois grandes mestres, um deles é Flávio Kolin e o outro é Gutemberg Monteiro, a quem ele agradece por tê-lo inserido no circulo das histórias em quadrinhos e hoje ter seu nome relacionado ao lado dos mais respeitados artistas do ramo.
 
 
No final do encontro, Goott também ouviu palavras elogiosas do caricaturista baiano Jef Bonfim, do Grupo Caricaturas Solidárias, que disse que se sentia honrado com a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente.  
 
 
Segundo Bonfim, os ensinamentos que Goott passou para toda uma geração vão perdurar. “Nós passaremos, mas o seu ensinamento continuará, porque houve uma atitude, um querer, um amor à arte”, afirmou o caricaturista.
 
 
Ele concluiu dizendo que se Goott não foi beneficiado financeiramente ou reconhecido como mereceria pelas pessoas que o empregaram “o problema é delas”:
— A sua grandiosidade, luminosidade e brilho são coisas que lhe pertencem, e a cada um de vocês (referindo-se aos outros desenhistas presentes). Eu quero deixar o meu agradecimento e dizer que me sinto muito honrado de fazer parte dessa nova geração que admira desenhistas como o senhor, declarou Bonfim.