Morre Milton Coelho da Graça


29/05/2021


Crédito: arquivo da ABI


O velório do jornalista Milton Coelho da Graça será neste domingo, 30, com uma homenagem ao ar livre a ser realizada ao lado da Capela Ecumênica, no Complexo do Caju, das 14h às 14h30. Em seguida, o corpo será cremado.


Leia aqui, depoimentos de jornalistas que conviveram com Milton Coelho da Graça


Paulo Jeronimo, Pagê, presidente da ABI

Conheci o Milton há muitos anos, através de um amigo comum, Paulo Roberto dos Santos, que já se foi há muito tempo. Tomamos muito chope no Lamas, jogávamos muita conversa fora enquanto planejávamos o que fazer para enfrentar a ditadura. Anos depois voltamos a nos encontrar na ABI e formamos uma frente de oposição para combater as mazelas das últimas administrações.

Certa vez, ele foi convidado para dirigir o Conselho Deliberativo durante a campanha e, depois, foi vergonhosamente traído pelo presidente que apoiamos.

Ficamos juntos na oposição e ele sempre me incentivava a lançar minha candidatura a presidente. Eu sempre recusei e, quando finalmente me candidatei, ele já estava doente. Mesmo assim, me enviou um recado de apoio. Lembro de um acidente sério que ele sofreu há alguns anos, quando caiu na saída do metrô. Socorrido pelos seguranças, foi levado para o Souza Aguiar, onde ficou internado numa enfermaria comum, completamente abandonado, praticamente sem assistência. Leda, sua fiel companheira, me fez chegar essa situação. Imediatamente, liguei para um assessor do Prefeito, que conseguiu para ele um tratamento adequado. Ele me confessou que se sentiu quase no inferno, mas garantiu que, depois, o tratamento melhorou. Assim que se recuperou, fomos comemorar no Da Silva, onde almoçávamos quinzenalmente.

Grande Milton, deixa um legado de um dos mais brilhantes jornalistas brasileiros nos vários veículos em que militou, com uma trajetória invejável.

E eu perco um amigo, um parceiro e um incentivador para realizar um trabalho que tem o objetivo de resgatar o protagonismo da ABI, o seu sonho sagrado.

Minha derradeira homenagem ao velho companheiro é apresentar, hoje, a imagem da nossa querida ABI totalmente recuperada.

Descanse em paz, querido Milton. Você deixa muita saudade.


Juca Kfouri, conselheiro da ABI

Morreu Milton Coelho da Graça, aos 91 anos, vitima da Covid. Carioca, foi editor-chefe de O Globo, diretor de redação das revistas Realidade, Placar, Istoé e Intervalo, do jornal Última Hora, no Recife, criador das revistas Arte Hoje, Vela e Motor e Tênis Esporte, além de correspondente em Nova York da Gazeta Mercantil, entre outros.
Editor do jornal clandestino Notícias Censuradas, foi preso em São Paulo, em 1975, e cumpriu seis meses de cadeia, como havia sido detido em Pernambuco, por nove meses, quando houve o golpe de 1964, ocasião em que foi torturado e perdeu todos os dentes.

Jamais tocava no assunto e nunca perdeu o gosto pela vida, verdadeiro animador de redações, além de ter um extraordinário faro para a notícia.

Ao ser libertado em Pernambuco e voltar para Rio, ao entrar na redação do Diário Carioca, num terno em que cabiam dois Miltons, viu o pessoal entre o assustado e triste e não teve dúvida: bateu palmas e gritou “Vamos começar tudo de novo!”. Ferino, destemido, brincalhão, era jogador inveterado de tudo que lhe apresentassem, da sinuca ao carteado, passando pelo loteria esportiva.

Formou-se em Direito e em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, o que o ajudou a escrever sobre tudo que fosse preciso, Fórmula-1, inclusive, de que cobriu para o Globo.

Vascaíno, solidário até a medula, curioso como poucos, militante comunista e pragmático gostava de repetir que existem três tipos de pessoas: as interessantes, as interessadas e as interesseiras. E dizia que devemos sempre procurar viver perto das interessantes, atrair as interessadas e saber que quando as interesseiras se aproximam é porque estamos perto da vitória. “Bem-vindos os oportunistas”, pontificava.

Eu o chamava de Miltinho das Candongas e aprendi demais com ele no início de minha vida profissional.
Sua morte faz com que eu reviva o sentimento da orfandade, embora saiba que vá lembrá-lo sempre sorridente.
Orfãos ficam também a filha Djamila e os filhos Flávio e Guilherme.

Viúva fica sua querida Ledinha, companheira de uma vida quase inteira.


Fichel David, conselheiro da ABI

Conheci o Milton quando começou a trabalhar no Diário Carioca, trabalhamos na Revista da sociedade, suplemento do jornal e na mesma redação trabalhavam os copys Décio Vieira Ottoni, José Ramos Tinhorão, Maurício Azedo, Berilo Dantas entre outros. Milton foi um dos grandes redatores que conheci.


Paulo César Martins, jornalista

Foi a Maria Célia Fraga quem nos uniu. Ela sentava na minha frente na Gama Filho e ouviu que eu queria sair da Light e exercer a profissão para qual estávamos estudando. Celinha falou: “procura esse cara. Preso pelos militares, ele acaba de sair da cadeia e foi contratado pelo doutor Roberto Marinho para dar um jeito na Rio Gráfica”. E me apresentei, claro, ao mais brilhante, inteligente, culto, bem-humorado e talentoso jornalista que conheço: Milton Coelho da Graca. Ele entrou na minha vida com o carinho de um pai. Por uma dessas coisas que não tem explicação, ele já tinha ficado na casa dos meus pais. Descobrimos isso milhões de anos depois. Na Rio Gráfica, dizia que eu era o Maçaneta porque fui o primeiro contratado e abri as portas para dezenas, na melhor redação que já trabalhei. Seguimos quase sempre juntos. Gostava de me levar, ou convidar, para onde ia. Ligava do GP do Japão ( “O Senna ficou louco. Disse que está vendo Deus!”). De Nova York (“quanto está o jogo do Vasco?”). De Maceió (“O Pedro Collor ficou maluco. Ele acaba de dar uma entrevista aqui e vai derrubar o irmão e a República”). De Morro Azul (“Vou passar na sua casa e pegar minha coleção da Realidade e o Chevette que guardou para mim). Do Rio (“Vamos tomar um café e comer umas broinhas”)!

O Dragão lutava bravamente contra esse maldito vírus. Não estou preparado, nem nunca estarei, para me despedir.

Ele partiu!


Paulo Marcelo Sampaio, jornalista

Ainda criança, já ouvia falar em Milton Coelho da Graça. “Foi o cara mais inteligente que conheci na minha vida. Trabalhamos juntos na General Electric. Não tinha assunto que ele não dominasse. Um gênio”, me dizia George Leone, casado com minha tia Nilda Leone.

Demorou ainda um tempo para eu contar essa história para o Milton, já nos anos 90. Não acho que ele tenha lembrado do Leone, mas “fico satisfeito de ter marcado a vida de alguém”, disse, com modéstia. Trabalhamos juntos na TVE, onde era comentarista de Política no Jornal de Amanhã. Vez por outra trocava de camisa no meio da redação. “Meninas, eis o meu torso nu!”, soltava sua erudição, para gargalhada barulhenta de Paulo da Luz, o manda-chuva do telejornal.
Deixamos de trabalhar juntos, mas ele não saía do meu radar. Generalista que era, estava sempre no N de Notícia, programa sobre jornalismo na GloboNews. Qualquer que fosse o tema, lá estava ele para nos ajudar.

Encontrei-o pela última vez em outubro de 2017, no lançamento de um livro de Juca Kfouri. Se não me falha a memória, Milton disse que Juca era um mestre. “Milton, magina, mestre aqui é você!” Mestre por ensinar sem qualquer academicismo, sem qualquer palavra difícil, sem esconder segredos. Uma generosidade que desaparece a cada dia nesse mundão, uma generosidade que só os grandes homens têm. E Milton Coelho da Graça foi um gigante. Obrigado, mestre.


Ágata Messina

É difícil falar de alguém que acaba de partir. Ainda mais quando laços de admiração e afeto te ligam a essa pessoa. É difícil, para mim, escrever sobre Milton Coelho da Graça, que acaba de nos deixar, abrindo uma grande lacuna em nossa classe.

Conheci Milton aos 20 anos, com pouco mais de dois anos de profissão, quando fui vender uma pauta para ele, diretor da Revista Realidade. Foi simpatia à primeira vista e também fiquei amiga da Leda Ebert, sua companheira até hoje. Logo em seguida, Milton assumiu a direção da revista Intervalo e me chamou para ser redatora. Acabamos vizinhos de porta e fazíamos parte do Gueto do Brooklyn, como era chamado um grupo de cariocas que trabalhava na Editora Abril, todos vizinhos, e que passava as noites frias de SP jogando intermináveis campeonatos de King, um jogo de cartas no qual nunca rolou dinheiro.

Milton nunca falou das torturas que sofreu quando foi preso em Recife. Diretor da Última Hora naquela cidade, veio o golpe de 64 e ele ficou nove meses na cadeia, apanhando a ponto de terem quebrado todos os seus dentes a coronhada. Quando voltou para o Rio, era um fiapo de gente. Logo conseguiu um lugar na redação do Diário Carioca e surpreendeu os colegas quando disse que não havia nada a lamentar, mas, sim, recomeçar.

Em 1974, pedi demissão da Veja e fui morar na Itália para respirar um pouco de ar puro, já que no Brasil o ar estava irrespirável. No fim do ano seguinte, recebo uma ligação dele, me pedindo para voltar e vir para o Rio. Estava preparando um novo projeto editorial e queria que eu estivesse na equipe. Voltei imediatamente, mas que decepção! Quando cheguei, Milton cumpria pena de seis meses em SP, sua última prisão. Festejamos com amigos a sua volta à liberdade.

Tempos depois, eu já no jornal O Globo, Milton me chamou para a Rio Gráfica e Editora, também do Grupo Globo. Foi quando ele criou as revistas Arte Hoje, Vela & Motor e Tênis Esporte. Foi uma bela experiência profissional.
Anos depois, voltamos a nos reencontrar, sempre a convite dele, na assessoria de imprensa da Prefeitura do Rio. Quando saiu, para ser vice na candidatura do Sergio Arouca a prefeito, Milton me indicou para ficar no lugar dele. Aliás, ele tinha essa mania de me deixar no lugar dele. Assim foi também na Rio Gráfica, onde ganhou o apelido de Dragão e criou o Dazibao, um jornal mural na redação, para afixar as notícias importantes da época.

Estive com ele no seu último aniversário, a convite da Leda, sua mulher, de quem continuo amiga até hoje. A emoção foi grande, porque quando me viu, me abraçou com carinho e disse: “Agata, eu acho você aonde estiver”.

É por isso que repito o quanto é difícil falar de um amigo querido que se foi. Com ele aprendi a ser jornalista, a editar e, principalmente, chefiar uma equipe com amor, alegria e responsabilidade.

Milton foi um exemplo para várias gerações de jornalistas, aos quais ensinou, passou suas ideias e os tornou amigos. Vai fazer falta para o Brasil de hoje pela sua coragem, garra e convicções inabaláveis. Um colega que em toda a sua vida defendeu a liberdade de expressão, mesmo pagando o preço da sua liberdade e integridade física.


Ancelmo Gois

Milton Coelho e uma lágrima furtiva

Mais cedo fiz o seguinte post no Twitter: pelo bem da imprensa, hoje e no futuro, peço humildemente aos jovens jornalistas que procurem conhecer, e talvez, desculpem a ousadia, que se espelhem um pouco, na trajetória de alguns coleguinhas das antigas. Exemplo: Milton Coelho da Graça, que morreu hoje aos 91 anos.

Longe de mim qualquer postura saudosista. Pelo contrário. Acredito, em condições normais de temperatura e pressão, na evolução da espécie. Acredito, quase sempre, que hoje é melhor do que ontem e pior do que amanhã. Ainda assim, o passado é um livro de recados que pode, desde que haja humildade, insisto, muito ensinar às novas gerações. Da mesma forma que os mais jovens podem transmitir saber em quantidade para os mais velhos.

Toda esta introdução é para falar de Milton Coelho da Graça com quem convivi aqui no Rio nos últimos 50 anos, nas lutas sindicais, na ABI e no combate à ditadura. Acho que ele, assim como o saudoso Maurício Azedo (aliás ambos tinham temperamento difícil muitas vezes), deixaram duas preciosas lições para os que seguem. A primeira é que jornalismo é amor, uma religião quase. Exige dedicação, inquietude, desconfiança, arrojo e desejo de ir mais além.

A outra lição é que, notadamente num país tão injusto como o nosso, não dá para ficar indiferente ao que passa ao seu redor. Desculpe, mas não dá para relaxar. Não é justo, digo isto mil vezes, não sentir pesar com a dor dos outros. Nós somos humanos. Não estou pedindo que nos transformemos em gladiadores, principalmente quando as regras democráticas estão valendo. A profissão tem regras de equilíbrio e ética. O que peço pode ser apenas uma lágrima furtiva diante de uma injustiça.

Este é o legado do Milton Coelho.


Regina Teixeira

Milton Coelho da Graça foi um furacão das redações. Incansável na busca pela notícia bem apurada e em fazer a diferença por onde passava. Foi um defensor da democracia. Ele tinha muito o que contar, o que ensinar. Tive o prazer de conviver com ele na redação do saudoso Jornal do Commércio. Ele era um diretor exigente, mas sempre com um olhar generoso e criativo. Me recordo que algumas vezes bati na porta da sala dele para desabafar sobre questões e dilemas profissionais. E mesmo depois da fase JC, ele continuava sendo um bom ouvinte.

Milton Coelho da Graça foi um grande amigo em momento importante da minha vida, quando resolvi pedir demissão da Gazeta Mercantil e viver o sonho de morar em Paris, onde fiz mestrado e fui colaboradora de alguns veículos. Fui ouvir a opinião dele. Sabia que Milton teria a palavra certa. Não deu outra: Com sua sabedoria, experiência e perspicácia, me deu muita força para seguir em frente.

Obrigada, meu querido amigo Milton.

__________________________________________________________________________________

Jornalismo de Milton Coelho da Graça

Por Ana Helena Tavares

Para o jornalista Milton Coelho da Graça, que foi perseguido, torturado, chegando a perder os dentes, “o homem é o único ser vivo que pode ter ‘medo do medo’”, que pode se acovardar ou enfrentar o medo, demonstrando coragem. “Os outros simplesmente têm medo”, diz. Nesta entrevista, ele conta a história dos jornais de resistência que editou durante a ditadura. Um deles criado para dar combate à proibição da censura de noticiar epidemia de poliomielite. Proibição que matou centenas de crianças por desinformação. Ele recorda ainda o período em que trabalhou em “O Globo” (anos 70 e 80). Deste período traz a lembrança do dia em que a ditadura prendeu Roberto Marinho.

Milton começa relembrando os momen…
[15:40, 29/05/2021] Ana Tavares: *Entrevista publicada originalmente no livro “O problema é ter medo do medo – O que o medo da ditadura tem a dizer à democracia” (Revan – 2016), de Ana Helena Tavares.
[17:18, 29/05/2021] Andrea Penna: Maravilha, Ana. Publicaremos.
[18:05, 29/05/2021] Ana Tavares: Obrigada, Andrea. Ainda dá tempo de fazer uma pequena adaptação em um dos parágrafos?
[18:56, 29/05/2021] Ana Tavares: O jornalismo de Milton Coelho da Graça
Por Ana Helena Tavares, jornalista, conselheira da ABI
Para o jornalista Milton Coelho da Graça, que foi perseguido, torturado, chegando a perder os dentes, “o homem é o único ser vivo que pode ter ‘medo do medo’”, que pode se acovardar ou enfrentar o medo, demonstrando coragem. “Os outros simplesmente têm medo”, diz. Nesta entrevista, ele conta a história dos jornais de resistência que editou durante a ditadura. Um deles criado para dar combate à proibição da censura de noticiar epidemia de poliomielite. Proibição que matou centenas de crianças por desinformação. Ele recorda ainda o período em que trabalhou em “O Globo” (anos 70 e 80). Deste período traz a lembrança do dia em que a ditadura prendeu Roberto Marinho.
Milton começa relembrando os momentos do golpe. “O meu abril de 64 foi de demissão. Mas antes eu já estava preso. Eu fui preso às 2h da manhã, madrugada de 02 de abril. Eu tinha estado no palácio com o governador (de Pernambuco), Miguel Arraes. O pessoal da assessoria de imprensa (do governo estadual) não apareceu para trabalhar. Cheguei ao palácio por volta das 17h (de 31 de março), depois de ter notícias de que o golpe estava encaminhando para a sua consumação. E eu ia ficar na assessoria enquanto não aparecesse ninguém. O governador achou bom eu ficar lá e me tornei um assessor de imprensa num lugar que ninguém queria ser. Cheguei a dormir na assessoria”.
“No dia 1º, o Palácio das Princesas (sede do Governo de Pernambuco) estava cercado pelo Exército. Celso Furtado (destacado economista) também estava dentro do Palácio e fiquei lá com ele até chegarem comandantes militares e darem voz de prisão ao Arraes. Arraes disse que não ia resistir, que não queria prejuízo para o povo. Aí, saí e imediatamente procurei companheiros da SUDENE (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste) com quem eu já tinha combinado de tirarmos alguns mimeógrafos da SUDENE para fazermos jornais clandestinos em caso de golpe. Mais ou menos por volta das 22:30 do dia 1º fizemos o 1º jornal clandestino. Fizemos uma manchete mentirosa ‘Arraes resiste’. Ele já estava preso, em Fernando de Noronha, mas nós não sabíamos e inventamos essa história. O jornal se chamava ‘Resistência’. Saímos para distribuir”.
“Sou perigosíssimo!”
“Durante a distribuição, um carro da polícia nos surpreendeu às 2h da manhã. Levou todo mundo para a Secretaria de Segurança. Fiquei preso, mas já não tinha nem mais vaga no xadrez. Eu e meus companheiros tivemos que dormir nas mesas da Delegacia de Ordem Econômica (Recife)”. Tamanha era a lotação nas delegacias pelo Brasil a fora logo após o golpe que estádios de futebol, como o Caio Martins, em Niterói (RJ), foram usados como presídio.
Milton prossegue: “Um dos presos conosco era filho de um deputado estadual e conseguiu ser solto, garantindo aos militares que não tinha nada com isso. Depois, veio a ordem de soltar quem não fosse procurado. E vieram com uma lista enorme, todos procurados pela polícia. Pediram para que todos dissessem o nome. Percebi que não tinha ninguém depois da letra ‘M’. Ele foi chamando, as pessoas diziam o nome e ele conferia na lista. Até que me perguntou: ‘E você’? Eu banquei o homossexual e disse (com trejeitos): ‘Ah, eu sou Albertinho Brandão, delegado’ Ele disse: ‘Sai daqui’! Assim, fui solto (no final do dia 02 de abril)”.
“Tudo começou novamente. Eu imaginava que, se eu estivesse na lista, eles iam me procurar novamente. Comecei a procurar maneiras de como eu ia dormir, porque a minha mulher informou que já tinham batido lá em casa. Consegui um lugar, mas percebi que a dona da casa, que tinha dois filhos, estava muito temerosa que alguma coisa acontecesse com a família toda, com toda razão. Então, saí e fui dormir na minha casa. Fui preso de novo em 20 de Abril e fiquei até 28 de novembro de 64, em várias prisões, o que me deu a convicção de que eu era um sujeito muito perigoso, sem saber. Porque, no final, em novembro de 64, só tinham quatro presos-políticos de Pernambuco, todo o resto já tinha saído. Era: Miguel Arraes, Gregório Bezerra, Francisco Julião e eu. Eu pensei: ‘sou perigosíssimo’!”
IBAD e IPÊS: os financiadores do golpe
“Só saí com habeas corpus do Supremo (em 64 ainda havia habeas corpus, cassado em 68). Primeiro (antes do golpe) eu era jornalista da Última Hora, que tinha sido depredada. Eu tinha uma coluna no Jornal do Commercio, onde eu tentava ser independente, durante o governo Arraes. Mas o principal foi que eu levantei figuras do IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) e do IPÊS (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) que eram mais ativas em Pernambuco do que em qualquer outro lugar do Brasil. Eles chegaram a subornar gente da TV. Tinha um programa que era o de maior audiência de Pernambuco, ‘Cadeira de engraxate’, com o artista Rui Cabral, que se vestia de engraxate e convidava pessoas para se sentar na cadeira e batia um papo político, um programa até criativo. Aí todos os programas dele eram para desancar a candidatura do Miguel Arraes ao governo do estado. Isso em 63”.
“Com o governo Arraes, o IPÊS e o IBAD deram um pouco de debandada, perderam dinheiro. Um dos secretários do IBAD procurou o governo querendo emprego. Essa raça toda gosta de boquinha, né… O cunhado do Arraes, que era um sujeito muito esperto, um homem de negócios, Valdir Ximenes, tinha um cargo no governo, era presidente de uma estatal, procurou ‘seduzir’ o cara, que concordou em entregar os canhotos dos cheques que o IBAD tirava em troca de um dinheirinho. Eu peguei um dos canhotos e achei um que tinha sido dado ao Rui Cabral. Então, passei as informações para a minha coluna no Jornal do Commercio. Publiquei o cheque do Rui Cabral, com quanto ele recebia por cada programa (10 mil cruzeiros), que ele pegava toda ‘semaninha’ do IBAD. A publicação dessa denúncia foi o que deu mais raiva neles. Então, eu era um cara especialmente indesejado pelo pessoal do IBAD. O fato de eu ter sido mantido esse tempo todo preso, sem formação de culpa, contrariando o próprio código penal militar, foi certamente influência do IBAD”.

Grande imprensa = grande empresa
A “Ultima Hora”, de Samuel Wainer, com quem Milton Coelho da Graça trabalhou, é tido como o único jornal que não apoiou o golpe, mas Milton pondera que “já havia jornais comunistas na época e pequenos jornais, pouco conhecidos Talvez também não tenham apoiado”. Ele cita o caso de um jornal chamado “O momento”, do Ceará, que foi vítima da repressão. “Havia lá um engraxate que era comunista. A polícia chegou lá, dissolveu uma manifestação, bateu no cara e levou ele preso. O nome do cara era Zé Curió e o jornal deu uma manchete: ‘Zé Curió espancado e preso por ordem de Truman’. Quer dizer, esse jornal com certeza fechou no golpe. Esse tipo de jornal resistiu. Mas dos grandes, de repercussão nacional, só a ‘Ultima Hora’”.
“Porque a “’Ultima Hora’ era o único jornal que defendia o governo Jango, tinha muitas raízes no governo. Era financiado pelo governo Jango e, em Pernambuco, pelo Arraes. E nenhum jornal do porte da “Ultima Hora’ poderia sobreviver sem apoio oficial. Porque os outros todos eram apoiados pelo grande empresariado”.
Hoje em dia, muitos usam o termo “imprensa golpista” para referir-se aos grandes meios de comunicação. Milton comenta as razões que levam a grande imprensa a representar os interesses das grandes empresas.
“Veja bem… Como que um jornal é mantido? Pelos seus leitores e pelos publicitários. E o jornal representa uma maneira de o sistema se manter. Os jornais, pela sua própria natureza, desde a Proclamação da República, eles pertencem a grupos oligárquicos, grupos oriundos da aristocracia rural (do início da República). Era quem tinha dinheiro naquela época e foram montando jornais diários importantes”.
“Os jornais diários de rotativa começaram a surgir no início do século XX. Nós chegamos a ter, na época da Independência, mais de 30 jornais no RJ, mas todos feitos em pequenas gráficas. A partir daí os jornais passaram a exigir um aporte de dinheiro muito grande. As máquinas rotativas custam milhões de dólares. O sonho do jornal ‘O Globo’ era chegar a dois milhões de impressões diárias. Eles estão muito longe da capacidade deles. A mesma coisa acontece com a Folha de S. Paulo, o Estadão, o grupo Zero Hora. São os únicos jornais com pretensões de ser nacionais. Só não são porque fazem acordos entre eles de reserva de mercado”.
“Quer dizer, há um acordo, que todo mundo sabe que existe, de que ‘O Globo’ jamais terá uma edição paulista, e o ‘Estadão’ e a ‘Folha’ jamais virão para o RJ. De vez em quando, há ameaças de esse acordo ser rompido, mas até hoje não foi. A ‘Folha de S. Paulo’ comprou até o título, segundo eu soube, de um jornal que se chamava ‘Folha carioca’, que foi depredado na época da guerra contra a Alemanha (2ª Guerra Mundial), quando o Brasil entrou em guerra contra o Eixo”. Ou seja, o título daquele jornal que acabou estaria na mão da ‘Folha de S. Paulo’.

“Enfim, há razões históricas, econômicas e políticas para a grande imprensa, no mundo todo, representar os interesses das grandes empresas. No Brasil, a mídia é mais concentrada devido à extensão territorial e aos acordos citados. Aqui, você nunca teve um jornal nacional. No Uruguai, o jornal sai em Montevidéu e em duas horas está no Uruguai inteiro, por via aérea, ferroviária… No Brasil, isso não existe. Os grandes jornais aqui estão concentrados nas grandes cidades e aqueles que são capazes de influenciar a opinião pública são dominados por grandes grupos”.
“O Globo” de hoje e “O Globo” de Roberto Marinho
“Há casos extraordinários. Por exemplo, o Roberto Marinho… Ninguém foi mais de direita do que ele, no entanto ele sempre gostou de ter gente de esquerda trabalhando com ele. Ele percebeu, inclusive, que, num determinado momento, se ele continuasse a ter gente de direita, como teve por muitos anos, ele não ia conseguir vencer a concorrência com o Jornal do Brasil. A partir daí, o caminho para o liberalismo foi percorrido pelo Roberto Marinho e continuado pelo filho dele, que fez uma autocrítica, coisa raríssima na imprensa, dizendo ‘desculpem eu ter apoiado a ditadura’… Não sei se foi correto, mas acho que eles pagaram um preço grande por isso. Eu, por exemplo, fui editor-chefe do Globo e, se você pega a página de opinião de ‘O Globo’ hoje, ela não é tão boa como era no tempo de Roberto Marinho”.
“Apesar da autocrítica, o que ocorre hoje é que a variedade de opiniões no jornal (‘O Globo’) está se tornando cada vez mais estreita. Você vê claramente que há uma maioria de opiniões conservadoras. Ao mesmo tempo, os jornais sabem que se não falarem para todo mundo eles começam a ser rejeitados, como ‘O Globo’ era há muitos anos atrás, até que Dr. Roberto mandou mexer nisso. O Estadão hoje, por exemplo. Qual jornal tem mais respeito pela liberdade democrática de imprensa do que ele? Um jornal super-reacionário, que sempre teve pessoas de esquerda trabalhando lá. Mas a grande imprensa, com pequenas variações, é conservadora no mundo inteiro”.
Conservadorismo
“O que é o conservador?”, pergunta-se o entrevistado. E ele mesmo responde. “É aquele que quer manter o que está aí, economicamente. Mas, dentre os conservadores, há os que são liberais no sentido cultural, herdeiros do iluminismo do século XIX. E aqueles ligados às camadas mais reacionárias”.
Milton Coelho da Graça se disse “profundamente amargurado” com uma pesquisa, realizada em 2014, ano desta entrevista, que havia apontado que dois terços (65%) da população brasileira consideravam que uma mulher que mostra os seios merece ser atacada ou estuprada por um homem. “Uma coisa tão estúpida, tão antiliberal, tão inimiga das liberdades individuais. E há mulheres na pesquisa… Eu fiquei espantado, decepcionado e até um pouco envergonhado de ser brasileiro, vendo que a maioria dos meus patrícios pensa assim. Não é um pensamento machista, é um pensamento idiota. A mulher tem que ser livre e mandar no corpo dela”. Depois, a pesquisa foi corrigida pelo IPEA, instituto responsável, que disse que o número verdadeiro era de 26%. Algumas entidades de Direitos Humanos emitiram nota afirmando que “26% ainda é muito”.
O papel da Igreja “em defesa do ser humano”
Milton considera que não só setores políticos conservadores brasileiros, mas também a Opus Dei, que a partir de João Paulo II se transformou numa instituição pontifícia, travam uma constante luta para acabar com a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a imprensa reflete isso. “Uma coisa que eu achei nos cadernos sobre a ditadura (lançados por ocasião dos 50 anos do golpe) foi que não houve um destaque para o papel da Igreja. E me refiro ao papel da Igreja em defesa das pessoas, do ser humano. Quer dizer, aqui no Palácio São Joaquim, no Catete, comunistas entraram clandestinos, dentro de malas de carros, porque o cardeal Dom Eugênio Sales estava dando proteção a eles. E era um cardeal conservador, não era um que apoiava abertamente a CNBB, como Dom Hélder Câmara, que não chegou a ser cardeal. Então, achei pequeno o destaque dado pelos jornais ao papel da Igreja Católica e, em especial, ao da CNBB”.
“Tivemos uma ditadura brutal, que matou gente, torturou, da maneira mais selvagem possível, mas aqui entre 300 e 400 pessoas morreram. No Chile, país com muito menos população, morreram 10 vezes mais pessoas do que aqui. Na Argentina, país que tem um terço da nossa população, morreram 100 vezes mais do que na nossa ditadura. Lá, mesmo velhos, os generais e torturadores foram punidos. Aqui, em nome de terem matado pouca gente, fizeram a lei de anistia que temos aí. Não sou contra. Querem 50 anos depois mexer na lei de anistia para quê? Na Argentina, o Videla foi para o banco dos réus. Aqui, os generais já estão todos mortos. Então, quem vai?”
“Vão botar ex-capitães, hoje coronéis, que têm 80 anos, a minha idade? Eu fico vendo o coronel Ustra, com sua arrogância, as coisas que ele fala, e fico com pena, sem brincadeira. Ele não entendeu que o mundo já tinha mudado quando ele entrou para a escola militar. Depois, foi criado na doutrina militar em que a ordem é a lei suprema. ‘Ordem e progresso’. Quer dizer, o progresso subordinado à obediência. Não é nada disso, é o contrário”.
“Mas aqui morreu menos gente (do que nos outros países da América Latina) e, sem dúvida, a Igreja Católica foi um dos elementos fundamentais para esse baixo número de vítimas de torturas e de assassinatos no Brasil. Isso é uma coisa que a gente tem que ter na cabeça: foi trágico, foi dramático, o que ocorreu no Brasil, mas muito menos trágico do que no Chile, na Argentina. E, apesar de eu não ser católico nem sequer cristão, a gente precisa lembrar que a Igreja teve papel fundamental aqui, foi talvez o principal obstáculo ao comportamento militar limitado”.
O MEDO
“Sempre tive, desde o primeiro momento. Imagina… Só não tem medo quem não for humano. O medo é um sentimento racional. Ás vezes, uma pessoa é assaltada e morre tentando reagir. Ele não pensou direito nas consequências de ter um sujeito na frente dele dizendo ‘me passa o revólver, me passa o celular. Eu acho que você não pode se insurgir, é melhor você ceder. Dá o celular, dá o dinheiro, mas não morra! Porque é humano ter medo de morrer, minha gente! É humano ter medo de apanhar”.
Fazendo o inimigo mudar de lado
“Na época da ditadura, tenho quase que certeza que a conselho da CIA, os nossos militares mudaram de comportamento a partir de 1975/76. Começaram a ‘melhorar’ entre aspas os seus métodos de tortura. Passaram a verificar que matar era menos importante do que fazer (os guerrilheiros) mudarem de lado. Para eles, transformar os que eles chamavam de ‘terroristas’ em agentes da CIA era duplamente vantajoso. Foi o que fizeram com um dirigente do Comitê Central do PCdoB. Deram 150 mil reais a ele, carteira nova, nova identidade. Ele foi para o Rio Grande do Sul, onde montou uma farmácia, com outro nome, outra vida. E, em troca, entregou a reunião do Comitê Central do PCdoB, local, hora, telefone… Então, esse cara foi muito mais valioso do que se fosse torturado. Isso foi dito por um general em entrevista ao Geneton Moraes Neto. E já saíram documentos na imprensa que comprovam outros casos semelhantes. Eu sei de outras pessoas que falaram tudo e ganharam identidade nova, tal…”.
Dois jornais clandestinos e um ‘legal’
Milton Coelho conta que editou três jornais durante a ditadura, um deles uma experiência de fazer um jornal legal: “Não tínhamos a veia humorística para fazer um jornal como o ‘Pasquim’, éramos todos ‘caras’ mais sem graça (diz rindo). Nem tínhamos os recursos que o Gasparian colocou no ‘Opinião’. Aí resolvemos testar até onde iria a necessidade de censura de um jornal que refletisse o nacionalismo de direita e, ao mesmo tempo, atacando as mazelas mais evidentes do capital estrangeiro. Imaginamos que eles (os militares) não iam fazer nada, iam achar legal… Especialmente no governo Médici. Chegamos a fazer mais de trinta edições desse jornal, que se chamava ‘Fato Novo’, e despertou curiosidade de vários setores, inclusive teses de mestrado, na Bahia teve uma. Todo mundo querendo saber que diabo de jornal é esse que não fala nada de democracia, mas dá o cacete na Rhodia, por exemplo, e no que ela faz para destruir os tecidos naturais brasileiros”.
Além deste, Milton fez dois jornais clandestinos com grupos diferentes: “O primeiro deles foi com um pessoal da USP, estudantes. Um jornal contra o AI-5. Em dezembro (de 68) saiu o AI-5, em janeiro (de 69) saiu o nosso primeiro jornal. Chamava-se ‘Resistência’. Foi um furo logo de saída. Os depoimentos de Lacerda quando foi preso. Lacerda foi preso no AI-5 e ninguém falou isso, não se pôde publicar. Ele deu para nós e nós publicamos. Acho que é o único depoimento sério do Lacerda, depois do AI-5, falando a verdade e expondo suas ideias. Está no ‘Resistência’ num jornal que saiu, pasme, em janeiro de 69. Era um jornal pequenininho, mas o próprio Lacerda nos disse o que tinha dito preso. Esse jornal se manteve durante um ano. No final do ano (de 69), o pessoal da distribuição foi preso dentro da USP. Saíram 11 edições desse jornal. Eu só sobrevivi, porque dois professores da USP, que estavam ligados ao jornal, resistiram em pau de arara, e não disseram quem é que fazia (José Evandro e Maria Isabel foram os professores que salvaram a vida de Milton Coelho). Só a eles dois eu agradeço a minha liberdade nessa época. Era um jornal feito em condições péssimas, com dificuldades de toda ordem”.
E a censura matou crianças…
“Quando ocorreu a epidemia de poliomielite (a partir de meados do governo Médici), morreu muita criança por causa da censura. Porque a censura idiotamente impediu os jornais de publicarem. Ora, qual a melhor forma de atacar uma epidemia? Divulgando, de maneira que as pessoas se protejam. Mas não… Eles agravaram a epidemia, matando centenas de crianças. Aí nós juntamos um grupinho para fazer um jornal clandestino chamado ‘Notícias Censuradas’. E começamos falando da epidemia de poliomielite até eles recuarem… Acho que foi um jornal decisivo para montar uma resistência à burrice dentro do governo Médici”.
No início de 1975, Milton Coelho foi preso por causa do jornal “Notícias Censuradas”: “Fui levado para o DOI-CODI, onde fiquei um mês. Por causa disso, eu tive que assinar uma confissão dizendo que eu fazia jornal e tal…” Mais tarde, no mesmo ano, Milton estava na Suíça fazendo um curso pela ‘Editora Abril’. Segundo ele, “os Civita (donos da ‘Abril’) eram pessoas com muito repeito por opiniões e não ficaram muito surpresos quando souberam que fazia jornais clandestinos”. Nessa época (75), ele foi denunciado na TV por outro jornalista que também havia sido torturado (Marco Antonio). “Fiquei triste e, bestamente, preferi voltar ao Brasil, mesmo sabendo do perigo da condenação”.
‘Comunista do Roberto Marinho’
Ao voltar, Milton foi julgado e preso, por seis meses, tendo saído em junho de 1976. “Quando tive o prazer de ser convidado por Roberto Marinho para ser diretor da revista do ‘O Globo’, a antiga. Saí do xadrez e ele me convidou. Não poderia ser melhor a minha integração com ‘O Globo’ e, a partir daí, tenho que ter respeito por uma pessoa que fez isso por mim. E é preciso perceber traços nele (em Roberto Marinho) que às vezes as pessoas não percebem. Vou te dar um exemplo, só para você saber que Roberto Marinho era melhor que todo resto da família dele: ele tinha um carinho pelos funcionários de ‘O Globo’ muito raro nas relações de patrões com empregados. Pouca gente sabe, por exemplo, que na semana de aniversário do jornal, em julho, ele dava a todos os funcionários uma semana de salário. Quantas empresas você conhece que fazem isso?”
“Ele (Roberto Marinho) tinha um negócio de que ‘O Globo é feito pelas pessoas que trabalham nele’. Uma vez, o Joaquim Magalhães, que era ministro, veio ao Rio e, como alguém tinha dito a ele que os redatores controlavam a opinião do jornal, ele disse ao Dr. Roberto que os redatores não podiam ser comunistas. Roberto Marinho disse: ‘Ministro, o Senhor toma conta dos seus comunistas e eu tomo conta dos meus’. Frase que ficou célebre”.

“Fazer jornal é um convite ao erro diário”
Milton Coelho da Graça, comunista declarado, trabalhou no jornal ‘O Globo’ por cerca de dez anos entre as décadas de 70 e 80. Lá, foi por muito tempo chefe de redação e deixou lembranças nos repórteres que trabalharam com ele. PC Guimarães, que na época desta entrevista era professor de jornalismo das Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA), no Rio de Janeiro, foi um deles. Convidado a definir Milton em uma palavra, PC disse que ele era um “trator”. “No bom sentido”, explica. “No sentido de ter muita energia”, completa. Já outro jornalista que também foi repórter de Milton e pediu para não ser identificado, definiu-o como um chefe que “pegava no cabo do chicote para fazer seus subordinados trabalharem”. Com base nestas impressões de seus ex-repórteres, Milton comentou como ele entende o funcionamento de uma redação, contou um pouco mais de sua história no jornalismo e analisou nossa grande imprensa:
“Olha, entrei numa redação em 1959 e nunca mais saí. Antes de 59 eu já tinha sido jornalista em congressos da UNE, num jornalzinho do qual muito me orgulho chamado ‘O Picolé’, que até hoje é lembrado pelos velhos militantes estudantis. Fiz um jornal da Faculdade Nacional de Direito, ‘Movimento’. Além disso, comecei a trabalhar profissionalmente em maio de 59. Já lá se vão 55 anos e continuo trabalhando como jornalista. Pelos anos que tenho de redação, eu comparo uma redação a um campo de batalha diário. Quer dizer, você tem uma tarefa a ser cumprida, você não pode permitir que ninguém vire a cara para o lado, que deixe de dar ‘o tiro’ que tem de dar”.
“Porque aquilo é um trabalho coletivo. Tem um vendo um negocio em Madureira, tem um que tem de fechar uma matéria na Tijuca… Cada um tem que cumprir o seu papel. E você só consegue fazer com que tudo isso seja harmônico, que seja uma coisa sem erros – o que é difícil porque o jornal é um convite ao erro diário – se você cumprir horários e prezar pela qualidade de texto. ‘O Globo’, por exemplo, todo dia tem uma errata de erros de português. Aí, você se pergunta: como é possível ter erros depois de tanta vigilância? Porque a qualidade 100% eu diria que é impossível. Erros sempre têm. Mas a tarefa (de um chefe) no comando de uma operação dessas é exatamente a de um general no campo de combate: ele tem de ganhar. É uma vitória que é de todos. E cada um tem que cumprir religiosamente o seu papel. Então, o meu apelido em alguns lugares era ‘dragão’. Porque o cara tinha que me trazer a matéria… (risos)”.
Caso Riocentro
“Naquele tempo, eu tinha uma TV dentro da minha sala (na redação) e a TV Globo ficava ligada ali. Aí, a bomba explodiu na noite de 31 de abril. Quem cobriu para a TV, em edição extra, foi a Leila Cordeiro, que hoje está nos EUA. O cinegrafista também foi muito importante e os nossos repórteres perceberam na hora que havia outra bomba. Pensei: ‘tenho que pegar logo isso porque vão censurar’. Pedi para correrem, para fazerem um fotograma e levarem para o jornal como fotografia para a gente publicar. E nós também tínhamos mandado um repórter maravilhoso, Marcelo Uberaba, que hoje é chefe de redação do ‘Estadão’ na sucursal do Rio. O coronel tinha arrebentado as vísceras e estava no hospital Miguel Couto para ser operado. A bomba estava cheia de palha de aço. A finalidade disso é torná-la mais destrutiva. Aí, liguei para o Dr. Roberto e disse: ‘nós descobrimos uma nova bomba. Já ouvimos pessoas que confirmam que existe mesmo esta bomba. Vamos dar isso’. Ele disse: ‘tudo bem’”.
“Desliguei o telefone, ganhei ‘habeas corpus preventivo’ (refere-se à aceitação de Roberto Marinho). Então, coloquei lá: ‘havia uma segunda bomba no Puma (carro usado para o atentado)’. E preparei a manchete. Merval (Pereira), que hoje é diretor, era chefe da sucursal de Brasília e me confirmou que o diretor da Polícia Federal e o Tancredo Neves haviam dito a ele que era isso mesmo: havia outra bomba. Aí mandei bala. O dia foi seguindo e Marcelo Uberaba me ligou do hospital dizendo: ‘Milton, conversei com um dos médicos que vai operar para ver se ele topa levar a nossa máquina lá para dentro e fotografar a operação’. Eu disse: ‘Claro, não tem problema’. E o médico fez isso. Chegou a foto. Entrou um cara na redação, coronel Job Lorena, encarregado do inquérito, chefe de comunicação do 1º Exército. Foi falar com o Ely Moreira, que tinha uma mesa no centro da redação. Ele se apresentou e o Ely começou a jogar conversa fora com ele”.
“Lá pelas tantas, final da noite, dia seguinte à bomba, o Ely me liga e diz: ‘não tô mais conseguindo engabelar o coronel, vou ter que dizer para ele que é você quem manda’. Falei: ‘tá legal, manda para mim’. O cara me disse que achava que era eu o ‘comandante’. Eu disse: ‘não senhor, o comandante é o Dr. Roberto Marinho, e tem também o Evandro (Carlos de Andrade), eles são o Estado Maior, eu sou o comandante do campo de batalha, obedeço ordens e só eles podem mudar o que acontece no campo de batalha’. Ele disse: ‘é sobre isso que eu vim falar, você está com uma coisa aí que a gente não quer que seja publicada… (a foto da operação)’ Eu disse: ‘não posso mudar, aqui só manda em mim Roberto Marinho e Evandro, que está na Europa’. Ele perguntou: ‘e eu posso falar com o Roberto Marinho’? Eu disse: ‘pode, vou ali dentro pegar o telefone dele’”.
O dia em que a ditadura prendeu Roberto Marinho
“Abri uma porta que estava do meu lado, me tranquei lá dentro e liguei para o Dr. Roberto dizendo: ‘estou aqui com um problema, o coronel quer ligar para o Senhor, acho que vai ser difícil para o Senhor Enfrentar, então peço que ao desligar esse telefonema o Senhor não atenda mais nenhum’ Aí dei o número para o coronel. Ele saiu feliz com o telefone do Roberto Marinho. E o jornal saiu com uma linha de fotos de dentro da sala de operação do Miguel Couto, manchete e a bomba no meio do jornal. No dia seguinte, Roberto Marinho saiu de casa e estava uma caminhonete do 1º Exército esperando por ele. Levou-o para falar com o comandante Job Lorena”.
“Quando eu cheguei à redação, Dr. Roberto já estava me esperando. Ele disse: ‘Mas que papelão, hein seu Milton, o Senhor fez comigo! Você sabia que eu fui preso e fiquei até às 11h30min no 1º Exército’? Eu disse: ‘Hã’? E ele: ‘O Senhor não me falou tudo que ia colocar no jornal’! Eu disse: ‘Claro que falei. Que tinha sido encontrada outra bomba… Que o Tancredo Neves tinha confirmado’. Aí ele perguntou: ‘Mas e aquelas fotos’? Eu disse: ‘Aquilo eu achei menos importante’. Ele disse: ‘Ah, você achou isso… Você não ficou feliz com a minha prisão, né’? Eu disse: ‘Não Senhor’! E ficou por isso mesmo, nunca mais falamos sobre o assunto”.
*Este texto é uma versão reduzida e adaptada de entrevista publicada originalmente no livro “O problema é ter medo do medo – O que o medo da ditadura tem a dizer à democracia” (Revan – 2016), de Ana Helena Tavares.


Pinheiro Junior, jornalista

Milton Coelho da Graça estreou na escola jornalística de “Ultima Hora”, onde se diplomou, dando um susto de eficiência nos mais eficientes editores deste espetacular vespertino. Produzia ele textos finamente copidescados e com títulos inventivos com tal velocidade e perfeição que logo daria um salto da editoria de assuntos polícias para a chefia de reportagem. E, por fim, para a posição de editor-geral. O diretor Samuel Wainer se apaixonaria por sua eficiência com tal intensidade que, um ano depois, quando fundou e instalou a UH-Nordeste no Recife (1959) não pensou duas vezes para lhe entregar a chefia da redação com Mucio Borges na editoria geral. Desta posição, Milton só seria desalojado pelo golpe de 1964 ao tentar impedir loucamente a invasão da redação pernambucana pelos soldados de um certo general que confessava prazer orgástico em espancar jornalistas independentes e empastelar jornais progressistas. Milton foi arrastado pelo chão afora até a prisão onde lhe quebraram os dentes. Todos. Mas não lhe quebraram a espinha do ideal jornalistico. Logo ele estaria de novo na luta em redações sobreviventes da “Abril” e de “O Globo”. Deste último foi editor-chefe. E se juntou à combatividade delineada pelo velho vespertino pronto a ganhar destaque na área de restauração da democracia. Afinal Roberto Marinho não dormia de touca. E sabia se cercar dos bons amigos da verdade que se impunha de novo ao país. Verdade era, aliás, a palavra-chave para o permanente engajamento de MCG. Ele repetia nas redações que não há jornalista bom trabalhando servilmente em cima do muro. Ou se é contra ou se é a favor. Num de seus últimos depoimentos para “Memórias da Imprensa Escrita” – gravado e posto em ótimo volume por Aziz Ahmed – Milton pontifica em seus curiosos relatos sobre a indeclinável missão dos jornalistas que é a de buscarem sempre a verdade para repassa-la à sociedade. Aos 90 anos e presa do implacável alzheimer, MCG, dobrou-se porém, foi ante as garras do coronavirus. E morreu neste sábado, ao amanhecer, assustando agora o jornalismo inteiro nacional que já o acreditava posto em vida como uma semente imortal da dignidade jornalistica.