Livro exalta legado de Cipriano Barata


23/06/2010


Acaba de ser incorporado ao acervo da Biblioteca Bastos Tigre o livro “Cipriano Barata — Sentinela da liberdade e outros escritos” (Edusp, 2008), organizado e editado pelo jornalista e historiador Marco Morel. Trata-se de uma obra que, segundo o próprio organizador, reúne uma variedade de textos que permitem, pela primeira vez, que se tenha uma visão do período de emancipação do Brasil — fase de construção do Estado e da Nação brasileira, e do surgimento da imprensa nacional —, quando o País deixa de ser Colônia para se transformar em um Império.

O volume apresenta 88 números de jornais redigidos por Cipriano Barata, além de sete manifestos / dissertações, alguns deles inéditos, três textos diversos e os pronunciamentos nas Cortes de Lisboa. Todo esse precioso conteúdo é apresentado pelo organizador por critério cronológico e pelo contexto em que surgiu cada um dos escritos, enriquecidos com comentários esclarecedores sobre as principais questões em debate.

O primeiro número do jornal Sentinela da Liberdade foi publicado em 1823, época em que pela primeira vez no país a imprensa pôde circular sem censura prévia. Enquanto que Cipriano Barata, seu idealizador, nasceu em 26 de setembro de 1762, na freguesia de São Paulo, em Salvador (BA). Para Marco Morel ele foi um dos primeiros e principais líderes políticos brasileiros no período em que “o Brasil se formava em nação”.

No texto de abertura do livro, Morel ressalta que a liderança exercida por Cipriano Barata tinha algo de especial, pois, diferentemente do lugar comum do período, não se baseava no poder econômico, militar ou até mesmo burocrático, “mas através do carisma e do convencimento, da pregação da palavra pública impressa e falada”, marcadas pelo tom expressivo de suas aspirações idealistas.

Revolucionário

Cipriano Barata

A seguir, Marco Morel fala sobre o pioneirismo do livro e a importância de Cipriano Barata para a História do Brasil:
— Realmente, pela primeira vez os textos, nunca publicados em livro, são impressos desde a morte do autor, há 172 anos. Cipriano Barata era famoso, figura central na cena pública, mas aos poucos foi coberto com manto do esquecimento histórico. Cipriano foi uma das primeiras lideranças políticas a nível nacional no Brasil, logo após a Independência. Exerceu tal liderança através do carisma (paixão e razão) e, sobretudo, pela imprensa. Foi um dos pioneiros da imprensa no País e encarnava um amplo projeto alternativo de sociedade, que não foi o predominante. Ainda que não sistematizados numa obra orgânica, os escritos de Barata expressam o pensamento político radical (no bom sentido, de quem vai à raiz dos problemas) daquela época. Esta edição visa a facilitar o acesso aos pesquisadores e a quem se interessa em compreender criticamente as matrizes do Brasil.

Marco Morel explica que organizar e editar esta obra era um sonho antigo, de mais de 30 anos, aparentemente impossível de se concretizar devido à amplitude do trabalho. O projeto começou a tomar forma com um pequeno livro, escrito em 1986:
— Publiquei o livro e defendi o meu Mestrado sobre o tema em 1990, sob a importante orientação da professora Célia Freire, que também pretendia esta publicação. O livro ficou com 936 páginas em grande formato, pode-se dizer que é literalmente um trabalho de peso!

Segundo Morel o livro só existiu porque contou com a “extraordinária contribuição” do historiador István Jancsó, coordenador, com Pedro Puntoni, da Coleção Documenta, da Edusp:
— O István, que faleceu recentemente, era uma pessoa generosa, lúcida e empreendedora. Ele costumava dizer que Barata era o “Che Guevara brasileiro”. No fundo acho que foi por isso que organizei esta obra, durante cinco anos, trabalho gigantesco pelo qual recebi uns R$ 1 mil até agora. E se não fosse também a imensa generosidade de minha amiga e irmã Maria Helena Guimarães Pereira, jornalista que trabalhou ainda mais do que eu, o livro não se concretizaria. Estávamos todos irmanados em trazer à luz uma parte importante da história revolucionária do Brasil, como disse Caio Prado Jr. em relação a Cipriano. Claro que um revolucionário dentro das limitações de seu tempo, como ocorre para qualquer personagem histórico.

Influência

Sobre a importância histórica do jornal Sentinela da Liberdade, Marco Morel diz que foi tão grande que acabou influenciando o surgimento de outros periódicos em diversas províncias do País, inclusive com o mesmo título:
— Lançado em 1823, foi tamanha a influência deste periódico que surgiram vários, com o mesmo título, em diversas províncias e até no exterior, criando uma das primeiras redes de comunicação impressa no Brasil, interligada por um ideário de luta política. — conta Marco Morel, afirmando que o jornal era revelador “de um Brasil que poderia ter sido”. — Era a época dos primeiros passos, disputas e ensaios de construção de um Estado e uma Nação.

Por meio do Sentinela da Liberdade, foram levantadas algumas bandeiras que acabaram não se cristalizando (“algumas naquele período, outras ainda hoje”) para a formação do Estado-nação idealizado por Cipriano Barata. Marco Morel assinala as principais críticas publicadas pelo veículo:
— A crítica ao predomínio do Poder Executivo sobre o Legislativo e o Judiciário, a denúncia de corrupção política, a implantação do federalismo enquanto descentralização provincial, aumento e garantia da liberdade de expressão, colocar limites na grande propriedade fundiária e redefinir a posse das terras, desmantelar o aparelho repressivo das prisões existentes, republicanismo e antiaristocratismo, liberdade de culto, fim do tráfico atlântico de escravos, eliminação gradual do trabalho escravo, combate ao predomínio britânico na economia e nos costumes e, também, ampliação dos direitos de cidadania para expressivos contingentes oprimidos do ponto de vista étnico e social. Há problemas de longa duração que ainda nos desafiam.

Preciosidades

Segundo o historiador o principal legado do Sentinela da Liberdade para a imprensa atual é que o jornal lançado por Cipriano Barata estava “ao lado e à frente da luta por liberdade de expressão e justiça social, por transformações que quebrassem as estruturas de dominação, em benefício da maioria da população”.

O ponto de vista de Marco Morel é de que há um grande distanciamento, mais do que cronológico, entre a chamada grande imprensa atual e a que Cipriano Barata e seus aliados faziam:
— Todos os jornalões e muitos dos jovens jornalistas atuais estão distantes da linhagem de Cipriano Barata, à qual pertenceu, por exemplo, meu avô Edmar e, ainda hoje, aparece na comunicação (impressa, falada ou digital) de movimentos sociais e de propostas alternativas e críticas, bem como na atuação da ABI. Precisamos retomar, recriar e ampliar esta linhagem.

Durante a sua pesquisa para livro, Marco Morel diz que se deparou com algumas preciosidades, entre as quais manuscritos nunca impressos, inclusive alguns escritos no período em que Cipriano Barata esteve na prisão:
— Temos a corajosa dissertação sobre torturas nas prisões militares no governo de D. Pedro I na presiganga (navio prisão), bem como um manifesto lúcido e contundente contra a criação da primeira condecoração honorífica brasileira, a Ordem do Cruzeiro, prenúncio em 1822 de uma nação desigual. Dos 186 números de jornais que sabemos redigidos por Barata, estão transcritos os 88 localizados, sobretudo, na Fundação Biblioteca Nacional e em outros acervos, inclusive o do bibliófilo José Mindlin, hoje doado à USP. Há também sete manifestos, além de cartas e debates parlamentares. Cipriano define conceitos como legitimidade, liberdade, pátria e povo e a idéia de república.

Cipriano Barata esteve preso nos períodos colonial, imperial e regencial, mesmo assim conseguiu lançar o periódico do cárcere. A prisão dificultou seu trabalho intelectual e sua ação política, mas não impediu que fosse expressiva:
— Cipriano nos permite ler a história de maneira exótica, isto é, fora da ótica predominante. Ao lidar com os textos ficou mais clara para mim a estreita ligação entre palavra impressa e palavra falada, mostrando que os impressos não ficavam restritos a uma pequena elite alfabetizada.

Crítica

Ao comparar seu livro a outros estudos sobre a história da imprensa no Brasil, Marco Morel disse que atualmente estamos vivendo uma nova fase dessa produção historiográfica, mas é bastante crítico quando afirma que existe descaso de grande parte da imprensa atual sobre o assunto:
— Procurei ao mesmo tempo registrar e compilar os documentos, mas também fazer uma edição crítica com informações complementares, análises e estudo, além de acrescentar imagens da época. O recente Bicentenário da Imprensa no Brasil (2008) não gerou movimento editorial expressivo, apesar de alguns trabalhos interessantes. Mas um importante passo vem ocorrendo através de reedições de jornais do século XIX, desde a monumental edição do Correio Braziliense (1808 -1822), por Alberto Dines, há oito anos, seguida de outros, como também pela digitalização e acesso on-line de jornais antigos.

O mais importante para o historiador Marco Morel — professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e pesquisador associado da Université Paris 1 (Panthéon-Sorbonne) — é que estão sendo criadas bases para uma profunda renovação da história da imprensa, e da própria História do Brasil:
— Além do acesso aos documentos, é importante manter esforço intelectual e institucional, renovar e afinar nossas reflexões, abordagens e métodos. Estamos percorrendo o caminho, declarou.