Liberdade de expressão sem tutela das Forças Armadas


02/07/2021


Por Cláudio Pereira de Souza neto e Luis Guilherme Vieira, Advogados da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) na ADPF (arguição de descumprimento de preceito fundamental) 826.

Artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo.

Por que eventual calúnia deveria ser caracterizada como ‘crime militar’?

Embora o Código Penal Militar (CPM) preveja hipóteses em que as condutas de civis poderão ser consideradas crimes militares, como afirma em artigo nesta Folha o presidente do Superior Tribunal Militar (STM), ministro general de Exército Luis Carlos Gomes Mattos (“Críticas, sim; ofensas, não”, 30/6), o Supremo Tribunal Federal tem entendido que apenas nos casos em que as “instituições militares” são afetadas é legítima a caracterização do fato como crime militar. Nos casos em que não se verifica a capacidade da conduta do autor de “atingir as Forças Armadas”, a corte afasta a competência da Justiça Militar e a aplicação do Código Penal Militar.

Apesar da interpretação restritiva que predomina na jurisprudência do Supremo, os critérios assentados nas expressões “afetar as instituições militares” e “atingir as Forças Armadas” ainda abrem espaço para a aplicação ilegitima do Código Penal Militar e para a fixação da competência junto à Justiça Militar.

 

Em boa hora, a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) propõe que o STF reaprecie a matéria por meio da ADPF (arguição de descumprimento de preceito fundamental) 826. Em um momento de guinada autoritária, em que o governo trivializa a presença militar na execução de tarefas civis, a atuação do Supremo é urgente e necessária.

O tema demanda reapreciação pelo STF sob o prisma da liberdade de expressão e do direito à informação. A submissão à Justiça castrense e a aplicação do Código Penal Militar produzem efeito resfriador sobre todos aqueles que desejam publicar notícias sobre as Forças Armadas.

Considere-se, por exemplo, jornalista que publica reportagens imputando condutas criminosas a militar na execução de operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Por que a eventual calúnia deveria ser caracterizada como “crime militar”? Observe-se que, nesse caso, as Forças Armadas se encontram cumprindo suas funções institucionais amparadas no artigo 142 da Constituição. Por que a crítica aos militares mereceria tratamento diferente da crítica dirigida aos servidores públicos civis?

A distinção não se sustenta, implicando a violação do princípio da igualdade. A circunstância de operarem o monopólio estatal sobre o uso legítimo da força deve tornar as instituições militares mais abertas à crítica pública e não o contrário. A rigor, não tem sentido julgar jornalistas pela prática de crime contra a honra, de modo diferente, com base em critérios especiais, quando se trate de ofendido militar. As instituições públicas, civis ou militares, integram a “res publica” (coisa pública). Devem, portanto, se submeter à permanente fiscalização por parte da cidadania crítica.

Os dispositivos constantes do CPM que limitam a liberdade de expressão devem se aplicar apenas a militares. As Forças Armadas são organizadas com base nos princípios da hierarquia e da disciplina. Trata-se de um regime especial a que se submetem os militares, não podendo ser estendido aos civis.
No atual momento da vida nacional, o Brasil precisa como nunca de uma esfera pública crítica e do estabelecimento de salvaguardas para que a cidadania possa iluminar todos os espaços em que o poder pretenda se exercer secretamente.