Hoje é Dia de Livro


Há muito formas de fazer poesia. Uma delas é pegar a vida nas mãos e tecer com delicadeza a brutalidade dos fatos. É o que faz o menino que caiu nas redes e nas graças da coluna. Com vocês, Mateus.

 

Agora acompanhe a resenha da colega conselheira Erika Werneck sobre a moça Tituba, escravizada, acusada e condenada por bruxaria. Uma história do século XVII que ainda faz eco e ressonância neste século XXI.                                           

Eu, Tituba, bruxa negra de Salem

Por Erika Werneck

Em Eu, Tituba, bruxa negra de Salem, Maryse Condé, escritora natural da ilha de Guadalupe, departamento ultramarino francês no Caribe, traz a público um fato histórico cheio de lacunas que não puderam ser preenchidas com dados baseados em pesquisas acadêmicas pelo simples fato de não existirem. Maryse Condé se apropria desse fato, recontando a história do julgamento das bruxas de Salem – pequeno povoado da América do Norte, onde, em 1692, imperavam a intolerância religiosa, o racismo e o preconceito – numa perspectiva que traz como protagonista uma mulher, Tituba, conferindo-lhe uma heroicidade.

Tituba existiu, mas a história dos vencedores não lhe reservou espaço fora da lista das 200 pessoas presas ou acusadas de bruxaria e 20 condenadas à morte. Ao se dedicar a desvendar a origem e a trajetória de Tituba, Maryse Condé penetrou na alma de sua personagem, de tal forma que se estabeleceu uma intimidade entre as duas. É a própria autora quem revela essa relação a seu público leitor, no início do livro: “Tituba e eu vivemos uma estreita intimidade durante um ano. Foi no correr de nossas intermináveis conversas que ela me disse essas coisas que ainda não havia confiado a ninguém.”

E é Tituba quem nos conta a sua história. Personagem e narradora, ela já começa explicando: “Abena, minha mãe, foi violentada por um marinheiro inglês no convés do Christ the King, num dia de 16**, quando o navio zarpava para Barbados. Dessa agressão nasci. Desse ato de agressão e desprezo.”.

Na sequência, revelam-se os horrores da escravidão. Tituba tem consciência de sua condição de negra escravizada numa sociedade dominada por homens brancos, e das barreiras que tem de enfrentar pelo simples fato de ser mulher.

Em Barbados, viu a mãe ser enforcada por tentar se defender de outro estuprador, um escravocrata branco. Tituba é expulsa da plantação e vai viver num quilombo como liberta. Lá ela foi acolhida por Mama Yaya, mulher mística e conhecedora das ervas e dos métodos tradicionais de cura, que passou seu conhecimento a Tituba. Já adulta, Tituba se casa com um homem escravizado mestiço, John Indial. Tempos depois, o casal é vendido a um pastor puritano, conhecido por realizar os julgamentos das bruxas de Salem, que leva ambos a Boston e, depois para Salem. Lá, Tituba é acusada de bruxaria e é presa. Ela sobrevive aos julgamentos, mas continua a vivenciar fatos por demais cruéis. À certa altura, Tituba volta a Barbados e se junta a um grupo de quilombolas, conhece Christopher, líder do grupo, com quem passa a se relacionar amorosamente e se engaja na revolta contra os donos das plantações locais.

Mais de 300 anos separam autora e personagem, e Maryse Condé relata a trajetória de Tituba sem floreios. Mas na sua escrita simples, clara e objetiva, há passagens descritas com suavidade, como as que revelam os temores, as aflições e os desejos ocultos de Tituba. Como diz Conceição Evaristo, no prefácio da edição brasileira: “… a ficção de Maryse Condé intervém na vida de Tituba. Cria uma origem, uma história para ela. Fala inventiva, em que a dor da personagem chega a ser quase redimida pelo exercício da linguagem poética da escritora… Para saber de Tituba, a bruxa negra de Salem, é preciso acompanhar quem sabe lidar com a alquimia das palavras. Maryse Condé tem as fórmulas, as poções mágicas da escrita.”.

Eu, Tituba, a bruxa negra de Salem, foi publicado pela primeira vez na língua portuguesa em 1997 e reeditado em 2019. A obra ganhou o Grande Prêmio da França de Literatura Feminina, em 1986 e o Grande Prêmio dos Jovens Leitores da França, em 1994 e, em 2018, Maryse Condé foi agraciada com o Prêmio Nobel Alternativo, o New Academy Prize . Tradução de Natália Borges Polesso. Editora: Rosa dos Tempos.