Extermínio da população negra faz parte de controle social


14/06/2021


Por Ivan Accioly, jornalista. Publicado no site www.negrxs50mais.com.br

Cada vez que as polícias (federal, civil, pm e do exército) ou as guardas nacional e municipais* matam, agridem, violentam uma pessoa negra e/ou pobre, sabem que estão respaldadas por um sistema que delas espera essa ação. O extermínio da população negra faz parte do processo de controle social executado com rigor, sem que precise de comandos diretos e específicos. É uma ação que conta com a concordância social. Kathlen, Agatha Félix, João Pedro, João Alberto, Marcelo Guimarães, Cláudia Ferreira, uma lista infinita, assim como das recorrentes chacinas. São mortes que ocorrem porque o braço armado tem esse mandato e o executa.

Os agentes, desde os generais, coronéis, delegados, comandantes em geral, aos soldados da esquina, sabem que as velas que se acenderão para aquele corpo negro estendido no chão não têm poder. Não haverá consequências em descartá-lo. Afinal, ele é apenas mais um corpo entre 12 milhões iguais que foram arrancados da África e sacrificados para construção do capitalismo. São corpos dos quais os senhores e sinhazinhas coloniais sempre puderam dispor à vontade. E eles seguem no poder, determinando os que podem, ou não, usufruir do mundo que consideram ser seu. Seus capatazes estão aí para garantir que nada mude.

 

Corpos negros já não apanham em silêncio

No entanto, há algo diferente nesse momento, que é a resistência dos corpos negros, que já não apanham em silêncio. A matança deliberada é um recado claro de que não há possibilidade de aceitação pacífica da insurgência desses corpos. Ao mesmo tempo aponta que os setores da repressão têm ciência da dimensão do que vem ocorrendo e não querem correr riscos desses modernos quilombos se rebelarem.

A perseguição aos corpos negros para intimidá-los e confiná-los é evidente. A cada dia temos um exemplo de como o processo ocorre. Seja o vereador preso na praça de Curitiba, o ciclista ameaçado e agredido em Cuiabá ou o assassinato de Marielle Franco. Todos são o mesmo recado: Não aceitamos vocês! Não queremos vocês! Vamos fazer o que for possível para dificultar a vida de vocês!

 

Repressão tenta sufocar resistência

Nesse ano aconteceu a maior chacina da história recente do Rio, com 28 mortos no Jacarezinho. Em 2020 o Instituto de Segurança Pública (ISP) registrou 1.245 mortes em intervenções policiais. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 79,1% dos mortos eram são negros.

No enfrentamento dessa realidade, cresce o chamado “empoderamento” da população negra, particularmente nas favelas e periferias. Acabou a fase em que o falso discurso da harmonia e da democracia racial prevaleciam ou não encontravam contestação pública relevante. Acabou a fase em que endinheirados faziam da segregação espacial uma credencial para a segregação da fala. As vozes que já foram isoladas e silenciadas, estão se fazendo ouvir num volume cada vez mais alto e unidas. Por este e outros motivos a repressão bate forte.

Os movimentos são múltiplos e dinâmicos. Há uma crescente penetração do conservadorismo evangélico, impulsionado, inclusive, na  aliança entre igreja e tráfico. Igualmente há centenas de iniciativas de projetos associativos, culturais, de formação política, de poesia, de cinema, de combate à fome. Em todos, o que circula é conhecimento. É informação, é valorização social, é formação política.

 

Progressistas têm que se conectar com população

É mais do que hora de os progressistas despertarem para a defasagem de seus discursos. Correrem atrás para entenderem a lógica dos interesses em jogo. Aprenderem sobre como opera a política nas periferias. Quais são as demandas, quais são os desejos, quais são as convicções. Essa população cada vez mais é ciente de seu valor e sabe o quanto custa cada conquista. Sabe que nada chega a ela de graça, sabe que tem que brigar e ficar atenta para não ser passada para trás a cada momento.

É uma população acostumada ao enfrentamento, ao jogo bruto, ao abandono e que construiu e constrói suas formas de resistências. O campo progressista tem que ouví-la com ouvidos de quem precisa aprender. Admitir que ao longo da história menosprezou as favelas e periferias. Se posicionou num andar que considera superior, detentor de conhecimentos e éticas a serem seguidos. Ficou falando sozinho.

Mas se hoje as igrejas evangélicas pentecostais oferecem saídas imediatas a demandas mundanas e espirituais e, com isso, conquistam adeptos, não significa que o jogo esteja jogado. A disputa está lá no campo. Ainda dá tempo de os progressistas buscarem as alianças nas favelas. É possível apoiar esse caminho de construção das demandas populares.

Já passou da hora de estar nas periferias e conhecer, diagnosticar e – o mais importante – realizar mudanças, implementar soluções e sair do discurso. As carências são muitas. Tráfico, milícia e político de direita não dão conta de solucionar. Mas têm mostrado que sabem lidar com os temas de forma pragmática e estabelecer interlocução.

Parem de nos matar!

Betinho dizia que quem tem fome, tem pressa. O povo quer atenção e isso não é privilégio da pobreza. Como também não o é a troca de favores e a busca pela vantagem imediata. No entanto, esses modos de operar são alvos permanentes de críticas da intelectualidade, que estigmatizou as favelas, os pobres e seus votos. Mas essa característica não é exclusiva das periferias. É uma marca nacional. Exemplos de pagamento de propinas, subornos, nepotismo, apadrinhamentos e outras espécies de “meritocracias” não faltam nesse país. Assim como não falta o racismo que move a sociedade e determina os corpos desvalorizados.

O que falta é ação concreta, com políticas públicas que revertam a lógica do pensamento nacional. Que não criminalize os negros pela cor da pele. Puna criminosos racistas em toda a cadeia repressiva, desde aquele que puxa o gatilho ao que justifica as ações, seja no Judiciário ou na mesa do botequim.

Que a frase “Parem de nos Matar” seja ouvida até não precisar mais ser dita.

*Letras minúscula mesmo, pois nenhuma delas demonstra dignidade para ser escrita em maiúscula.

Imagem em destaque: Charge do Ykenga e colagem de imagens