‘Eu, Dilma e o Lobo’, relato
de sobrevivente


30/12/2020


Data da foto: 22 de junho de 2016. 46 anos depois daquele encontro sinistro na sala de tortura do Doi-Codi da PE,  as amigas se reúnem novamente para uma entrevista no Alvorada, para a Agência Pública.  O processo de impeachment já estava em andamento. Foi um encontro de solidariedade.

Eu, Dilma e o Lobo

Por Vera Saavedra Durão, jornalista, membro da Comissão Inclusão Social, Mulher & Diversidade  da ABI 

“Pai, afasta de mim este cálice,

         Afasta de mim este cálice,

          De vinho tinto de sangue…”

(Cálice – Chico Buarque e Gilberto Gil)

No encerrar das luzes deste ano pandêmico, devo evocar os anos de chumbo para falar de Dilma Rousseff, companheira de tantas batalhas, desde que nos conhecemos em 1966, em Belo Horizonte, na luta estudantil, na militância clandestina de resistência na Política Operária (Polop), no Colina – Comando de Libertação Nacional,  e na VAR-Palmares (Vanguarda Armada Revolucionária Palmares).

Muita coisa já foi escrita sobre o episódio em que o Chefe da Nação, mais uma vez, recorreu a escárnios e deboches da tortura sofrida por Dilma, quando detida em março de 70, pela Operação Bandeirantes (Oban). Salta aos olhos, que o objetivo do Capitão, com essa provocação, é esconder a incapacidade de tirar o país do atoleiro sanitário em que se meteu. O saldo do descaso governamental são quase 200 mil brasileiros que até agora sucumbiram à Covid-19, vítimas fatais da perversa combinação do vírus com a perversa atuação de Bolsonaro.

O fato me obriga a relembrar um doloroso episódio que ocorreu comigo e com Dilma, no final de 1970, que relato num livro que estou escrevendo e que jamais saiu de “minhas retinas tão fatigadas”, como diria o poeta Carlos Drummond de Andrade. Eu tinha sido presa em junho, em Porto Alegre. Em novembro, fui transportada para a Polícia do Exército (PE), no Rio, onde deveria ser submetida a interrogatório. Em lá chegando, fui vendada e jogada numa solitária, onde havia um colchão todo sujo de sangue.

Ali fiquei, sob forte emoção de pavor de ser novamente submetida a tortura, depois de seis meses de prisão. Já estava ali há 4 dias e nada ainda ocorrera, além de ter tirado fotos de frente e de perfil para o arquivo do Exército. A porta da cela era de grades e eu não contava com nenhuma privacidade. Recrutas de Santa Catarina, os chamados “catarinos”, montavam guarda no pequeno corredor que abrigava as quatro solitárias. Recordando meus tempos de colégio de freira, no internato, eu rezava para que algum santo ou entidade do além viesse me salvar daquele suplício, já que o maior terror a que um ser humano é submetido é estar sob ameaça e não ter a quem recorrer.

Numa madrugada, estava eu dormindo, quando fui bruscamente acordada pelo barulho de chaves abrindo a celinha e alguém me sacudindo com força para eu acordar. Arregalei os olhos e vi que um “catarina” me levantava e me conduzia à sala de tortura. De chofre, acordei e vi que havia chegada “a hora da onça beber água”, como gostavam de dizer no interior de Minas, quando se aproximava o perigo.

Fui conduzida “manumilitare” a um cômodo bem grande, com luz mortiça, onde me deparei de cara com um pau-de-arara gigante próximo a uma parede. Sentado numa mesa de escritório, estava o então Major Gomes Carneiro, conhecido por todos nós como contumaz torturador.  Estava fardado. Me mandou entrar e fui caminhando para o fundo da sala, cabeça baixa, movida por  tétricas emoções do que poderia me acontecer, quando levantei a cabeça e dei de cara com a Dilma, que não via há mais de um ano. Lá estava ela, encostada numa mesinha, com seus óculos e seu cabelo curtinho. Ereta. Fiquei ao lado dela e vi que em cima daquele móvel tinha uma maquininha de dar choque, “Maricota”, como jocosamente os torturadores  a apelidaram. Estava com o coração disparado e as mãos geladas de medo. Dilma me olhou e eu a encarei e senti um ser humano do meu lado. Então, o Gomes Carneiro berrou:

– Vou fazer umas perguntas, se vocês não responderem, vou colocar uma para dar choque na outra!!!! E começou num blá, blá, blá, questionamentos sem pé nem cabeça, sobre nossa militância, como nos conhecemos  etc, etc. Respondíamos o que podíamos… até que, de repente, a Dilma falou:

– Major, o que o senhor quer de nós? Eu já estou presa há quase um ano, a Vera há seis meses. O que poderá tirar de nós? Dificilmente teríamos alguma informação nova que seja de seu interesse….

O Major nos encarou. Parou com o interrogatório e abriu a porta da sala de tortura e chamou dois catarinas:

– Levem elas para suas celas…

Neste momento, meus joelhos estavam batendo um no outro. Dilma e eu nem sequer viramos o rosto uma para outra, temendo que ele pudesse voltar atrás. E voltamos para nossas solitárias…

O que senti naquele instante, foi como se tivesse sido jogada do último andar do Empire State Building e aterrissado devagarinho e inteira na calçada.

Nunca mais esqueci do que eu e Dilma vivemos juntas, neste dia de novembro de 1970. Dilma é uma guerreira, é um ser humano excepcional que foi injustamente perseguida, escorraçada pela elite do atraso. E merece o respeito do povo deste País infeliz.

Que 2021 nos dê uma trégua e nos reserve dias menos insanos.

Ousar lutar, ousar vencer!