Entrevista — Carlos Alberto Luppi


30/12/2009


Um repórter a serviço da sociedade

Bernardo Costa

 

Natural de Colatina, no Espírito Santo, Carlos Alberto Luppi iniciou a carreira no Diário Mercantil, em 1968, quando ainda cursava Jornalismo, em Minas Gerais. Após vencer um concurso universitário promovido pelo Jornal do Brasil, deslocou-se para a Redação do diário em São Paulo, onde, em apenas nove meses, foi elevado à categoria de repórter especial.

 
Com passagens pela Folha de S.Paulo, Jornal da Tarde de São Paulo e Estadão, Luppi vinculou sua carreira às investigações jornalísticas voltadas para a área de direitos humanos. Nos anos 80 — com uma série de reportagens publicadas na Folha e o livro “Manoel Fiel Filho: quem vai pagar por este crime?” —, provou que a versão oficial do II Exército de que o operário cometera suicídio era falsa. O repórter conseguiu provar também que Manoel Fiel Filho havia sido detido, interrogado e morto por engano.
 
Ao ABI Online ele disse que novas informações sobre o caso serão publicadas em janeiro, em seu novo livro “Um vazio no coração do mundo” (Record), escrito em parceria com o jornalista Hugo Studart.
 
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ABI Online — Como surgiu o seu interesse pelo Jornalismo?
Carlos Alberto Luppi — Desde pequeno eu percebi que gostava de escrever. Lembro que quando tinha 12 anos de idade, fui editor-chefe do jornal do internato em que eu estudava. Depois, fiz vestibular para Jornalismo e ingressei na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Juiz de Fora. Em seguida, lancei um jornal na cidade chamado O JF, que era um suplemento semanal de um jornal católico que circulava em Juiz de Fora, mas os padres mandaram acabar com a publicação porque causava muita polêmica. Então, fui ser repórter do Diário Mercantil e depois fui editor do jornal.
 
ABI Online — Foi um início de carreira um tanto meteórico. O que aconteceu em seguida?
Luppi — Logo em seguida venci um concurso universitário de Jornalismo promovido pelo JB, com o tema “Juiz de Fora e o desenvolvimento regional”. Como prêmio, eu deveria escolher trabalhar na redação do jornal no Rio de Janeiro ou em São Paulo. Escolhi a capital paulista.
 
ABI Online — Por quê?
LuppiEu queria crescer na profissão em uma redação pesada, numa cidade que não conhecia. Lembro que pedi dinheiro emprestado a um amigo e, no dia seguinte da minha formatura, eu já estava desembarcando em São Paulo, às cinco horas da manhã. Tomei um café na rodoviária e fui à redação.
 
ABI Online — Como foi o seu primeiro contato com o JB?
Luppi — Fui me apresentar ao Carlos Prata, que chefiava a Redação na época, e de cara tentou me descartar dizendo: “Mas nós não estávamos te esperando hoje. Você nem tem onde ficar aqui em São Paulo”. Respondi: “Mas eu com paixão, quero trabalhar. Me dá uma pauta hoje!”. Ele negou, alegando que eu não conhecia a cidade ainda, no que retruquei: “Não conheço, mas vou conhecer através da pauta”.
 
ABI OnlineAssim você conquistou o direito de realizar a sua primeira matéria no JB.
Luppi — Depois deste diálogo, o Prata me deu quatro pautas. Eram 10h. Voltei para a redação por volta das 16h, escrevi as matérias e, no dia seguinte, duas foram publicadas. Comecei a escrever várias reportagens, recebendo uma ajuda de custo, classificado como repórter D. Até que chegou uma pauta do Rio de Janeiro, enviada pelo Alberto Dines, sobre um congresso de psicologia.
 
ABI Online — Você foi selecionado para desempenhar esta tarefa?
Luppi — Sim e o Prata me alertou: “Mas você tem que ‘furar’ o Globo. Topa?” Na época, início dos anos 70, a grande concorrência era travada entre o JB e O Globo. Cobri o congresso, e “furei” o Globo durante todos os sete dias em que durou o evento, antecipando assuntos, conseguindo documentos, entre outras coisas.
 
ABI Online — Com essa habilidade você deve ter conquistado de maneira definitiva o seu espaço no JB?
Luppi — Alberto Dines quis saber quem era o repórter que fez as matérias. O Carlos Prata citou meu nome, acrescentando que não tinha dinheiro para me contratar. Mas o Dines insistiu: “Não tem essa vaga, mas eu vou criá-la para esse repórter”. Ao cabo de nove meses fui promovido à categoria de repórter A.
 

ABI OnlineDireitos humanos é um tema que sempre esteve presente na sua carreira?

Luppi — Eu jamais deixei de cuidar deste assunto. Acho que o jornalista tem um compromisso com a sociedade, com o ser humano, com a capacidade que ele tem de provocar mudanças no mundo. Sempre pensei desta forma.
 
ABI Online — Você poderia relatar algum caso que remeta a esta sua postura?
Luppi — Em 1971, houve uma epidemia de meningite em São Paulo e o Governo militar estava escondendo o jogo. Lembro que entrei na Secretaria de Saúde, abri uma gaveta e roubei um documento sigiloso que relatava todos os casos da doença no estado, comprovando que havia epidemia. Fiz uma reportagem e denunciei isso, não por ser contra os militares, mas por compromisso social, acima de tudo. As pessoas têm que saber, nada pode ficar em sigilo.
 
ABI Online — O seu principal compromisso sempre foi com a verdade.
Luppi — Os atos secretos do Senado, por exemplo, não podem ficar em sigilo. Nesse sentido, o jornalismo foi sempre minha tribuna de militância contra a injustiça, a falta de coragem, a mentira.
 
ABI Online — Esta foi a sua primeira reportagem de grande repercussão?
Luppi — Acho que sim, mas lembro de outra também deste mesmo período. Recebi uma denúncia de estudantes universitários de Mato Grosso sobre o Projeto Aripuanã, promovido pelo Governo federal com a proposta de implantar um modelo de ocupação racional da Amazônia. Junto com o fotógrafo José Carlos Brasil, fui a Dardanelos, no Norte do Mato Grosso, e descobri que não tinha nada. Estavam gastando rios de dinheiro, e não havia projeto, estava tudo abandonado.
 
ABI Online — Vocês conseguiram fazer a reportagem e provar que o projeto era uma farsa?
Luppi — Consegui os relatórios e constatei que os caras alugavam aviões para levar prostitutas pra lá. Aí faltava cigarro, eles mandavam o avião voltar pra Cuiabá para trazer um pacote de cigarros. Também encontrei fotos de mulheres nuas transando com os responsáveis pelo tal projeto. Denunciei esta grande mentira e o projeto acabou.
 
ABI Online — Em 1976, ocorreu o assassinato do operário Manoel Fiel Filho, no DOI-Codi do II Exército de São Paulo. Você participou da cobertura desse episódio?
Luppi — Eu não cobri o caso diretamente, mas fiz a cobertura do velório para o JB. Muito rapidamente, pois o clima não era bom, não se podia falar muito. Pessoas estranhas à família se aproximavam de cada conversa para ouvir o que diziam. Dois anos depois, já na Folha de S. Paulo, eu propus ao Odon Pereira, Secretário de Redação na época, que voltássemos ao assassinato do Fiel Filho. Ele topou.
 
ABI Online — Você tinha alguma pista sobre o caso?
Luppi — Primeiramente, fui atrás do legista e li as reportagens sobre o caso publicadas na época no JB e na Folha, que não traziam muita informação, pois não se tinha falado muito sobre o crime, devido à censura. Todos achavam que quem tinha feito a necropsia era o Harry Shibata, que examinou o corpo de Vladimir Herzog, assassinado no mesmo DOI-Codi alguns meses antes. Mas constatei que o legista era o José Antonio de Mello. No dia 4 de novembro de 1978, eu o localizei e fiz uma entrevista de grande repercussão.
 
ABI Online — Que revelações ele fez a você? 
Luppi — Ele contou que a morte ocorreu por estrangulamento e não enforcamento. E que casos de estrangulamento são, em sua quase totalidade, casos de homicídio, morte provocada por terceiros. Então eu lhe perguntei: “Suicídio ou homicídio, doutor?”. Ele respondeu que isto não lhe dizia respeito, que sua função era apenas detectar a causa da morte, e não emitir opinião, mas deixou claro que o auto-estrangulamento é coisa completamente sui generis na área da Medicina Legal.
 

ABI Online — De qualquer maneira ele lhe deu a pista que você estava precisando.

Luppi — O médico afirmou que em 20 anos de profissão, tendo feito milhares de necropsias, nunca tinha se deparado com algum caso de auto-estrangulamento, e que os compêndios de Medicina Legal praticamente não relatavam casos semelhantes. Ele insistiu que o caso era atípico e raríssimo.
 
ABI Online — A sua matéria provocou a reabertura do inquérito?
Luppi — Com essa reportagem e uma série de outras. Depois dessa entrevista, que colocou em xeque o argumento oficial de que Fiel Filho teria cometido suicídio, se autoestrangulando com uma meia, todos os veículos começaram a cobrir o assunto, que foi para as primeiras páginas dos jornais.
 
ABI Online — E a história da foto da cena do crime?
Luppi — Eu estava atrás do Luiz Shinji Akaboshi, um dos interrogadores do Fiel Filho. Fui procurá-lo no II Exército de São Paulo e acabei conhecendo uma outra pessoa, que me disse: “o endereço do Akaboshi eu não vou te dar, mas vou te passar a foto do momento em que o operário é encontrado morto na cela, que acompanha o inquérito”. Quando a Folha publicou a imagem foi uma cacetada. Aí, eu comecei a soltar coisas do inquérito policial militar e o jornal foi publicando com exclusividade. Também publicamos depoimento do auxiliar de enfermagem Geraldo de Castro, que esteve preso junto com Fiel Filho.
 
ABI Online — O depoimento dele ajudou a esclarecer muita coisa?
Luppi — Ele contou que, enquanto estava sendo interrogado, ouviu os gritos e as súplicas do operário sendo torturado em uma outra sala próxima, até que entraram no local onde Geraldo estava sendo interrogado e disseram: “Chefe, a omelete está feito”. Omelete, na gíria policial, significa morte, execução. Depois destas e outras informações levantadas nesta série de reportagens, eu disse à dona Tereza de Lourdes Fiel que ela tinha tudo para reabrir o caso. E, no dia 18 de abril de 79, ela entrou com ação de indenização por perdas e danos na Justiça Federal, por meio dos advogados Marco Antônio Rodrigues Barbosa, Samuel McDowell Figueiredo e Sérgio Bermudes, da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo.
 
ABI Online — É essa possibilidade de interferir diretamente na realidade que mais te atrai no jornalismo?
Luppi — Eu gosto de mostrar o fato e todo o seu entorno. O conjunto de situações que contribuíram para determinado acontecimento, do ponto de vista mental, social, do coração das pessoas. Essa série de reportagens que saíram na Folha, publicadas em 80 no livro “Manoel Fiel Filho: Quem vai pagar por este crime?”, foi preponderante para que a União fosse condenada a indenizar a viúva. Mostrei que o Fiel fora detido, interrogado e morto por engano.
 
ABI Online — Quem na realidade os agentes da ditadura estavam procurando?
Luppi — Quando foram na Metal Arte, onde operário trabalhava, estavam atrás de uma outra pessoa, chamada Fiore. Isso várias pessoas me contaram durante as investigações. Como não encontraram nenhum Fiore na lista de empregados da empresa, levaram o Fiel, apenas porque o nome era parecido.
 

ABI Online — Consta que dentro do DOI-Codi o Manoel Fiel Filho foi vítima de outro erro grosseiro dos agentes da ditadura. É verdade?

Luppi — Quando o operário chegou ao II Exército, houve mais um equívoco, o interrogaram achando que se tratava de Manoel Guilherme, que estava preso no mesmo local e organizava reuniões do PCB na região de Itaquera.
 
ABI Online — Ou seja, a prisão, tortura e assassinato do Manoel Fiel Filho foi mais uma cruel sucessão de equívocos da ditadura militar.
Luppi — As perguntas feitas ao operário eram inerentes ao outro Manoel. Assim, uma série de erros causou a morte do operário. Manoel Fiel Filho não tinha militância política nenhuma. O seu envolvimento político era igual a zero!
 
ABI Online — Com base no livro “Direito à memória e à verdade”, publicado pela Presidência da República, pode haver a reabertura da ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal, visando à punição dos culpados pela morte do operário.
Luppi — Eu já imaginava que isto ia ocorrer. O livro citado é um documento oficial da Presidência que inclusive utilizou todos os dados que apurei na época para mostrar, em primeira mão, que o operário foi assassinado e que resultaram na ação proposta pela viúva. É uma nova ação que quer punir os torturadores e exigir nova indenização para Tereza de Lourdes Martins Fiel.
 
ABI Online — Como você se sente com esta notícia sabendo que contribuiu para que o caso não caísse no esquecimento?
Luppi — Fico feliz com a notícia sabendo que os dados e declarações utilizados são os mesmos do meu antigo livro, que também foram compiladas pela Comissão de Justiça e Paz de São Paulo. As informações que revelei na época, na Folha, levantaram o caso novamente. O livro que estou preparando agora, cujo título é “Um vazio no coração do mundo”, contém novas revelações sobre o assassinato do operário.
 

Livro sobre Fiel Filho

ABI Online — Fale um pouco deste novo livro.

Luppi — Contando com a colaboração do jornalista Hugo Studard, eu quis fazer um livro que relatasse não apenas o assassinato do Fiel Filho, mas o mostrasse como um ícone de uma época tenebrosa no Brasil que vai repetindo-se com o tempo. Eu não sou um expert em História política do Brasil, mas de 1937 pra cá esses casos de tortura e assassinato vêm-se multiplicando.
 
ABI Online — O principal objetivo do livro seria revelar a dinâmica do processo de arbitrariedades cometidas durante o regime militar?
Luppi — Eu queria mostrar toda essa questão que envolve o poder subterrâneo. O fato e o entorno do fato. Por que isso acontece? Por que se mata um inocente, ou um culpado, a troco de nada, sem nenhuma consciência? Com que objetivo? O que se passa na mente das pessoas? Como se trata a vida humana dessa forma?
 
ABI Online — Você acha que conseguiu as respostas para essas perguntas?
Luppi — O livro mostra, paralelamente àquele crime, vários casos que vão se costurando na forma de um roteiro cinematográfico. Mostramos o caso do Fiel Filho como algo que se repete continuamente e tem ligações com situações várias.
 
ABI Online — Por exemplo?
Luppi — A Operação Condor tem tudo a ver com o assassinato dele, se você mostrar seu entorno, a união dos Governos militares da América Latina para aniquilar comunistas, não respeitando fronteiras, entre outras coisas. Como hoje ocorre com um chefe de milícia ou do tráfico e suas disputas por território. No fundo esse conceito de poder é igual, a busca do lucro pelo lucro.
 
ABI Online — No final dos anos 70, você também foi autor de uma reportagem que desvendou um crime que teve repercussão nacional. Você revirou o caso do assassinato da menina Araceli, cinco anos e meio depois. Por quê?
Luppi — Porque não estava solucionado ainda. O José Louzeiro tinha escrito o livro “Araceli, meu amor”, um trabalho brilhante, de grande repercussão. Por intermédio dele, eu fiquei muito amigo do Asdrúbal de Lima Cabral, o perito que acompanhou o caso. Ele me disse que o crime ainda não estava concluído judicialmente. Então, fui a Vitória, onde ocorreu o assassinato, e tirei cópia do processo, que tinha sete mil páginas.
 
ABI Online — Achou alguma coisa reveladora?
Luppi — Li tudo e constatei que o pai da menina, Gabriel Sanchez, não era citado. Voltei para São Paulo, quando recebi um telefonema do Cabral dizendo que a mãe de Araceli, Lola Cabrera Sanchez, tinha voltado para Vitória, depois de ter passado os anos subseqüentes ao crime na Bolívia, seu país de origem.
 
ABI Online — Você conseguiu localizá-la?
Luppi — Eu fui para Vitória na intenção de entrevistá-la. Eu ficava o dia inteiro na esquina da rua observando seu comportamento. Comecei a levantar várias histórias sobre ela e a Folha foi publicando, até que a prenderam, sob a acusação de seviciar uma menina que tinha vindo da Bolívia para morar com ela. Fui à prisão e consegui a entrevista.
 

ABI Online — E o que você descobriu?

Luppi — Ela estava meio confusa, com medo. Acusou os Michelini, mas depois negou que foram eles. Depois assumiu que era amiga dos Michelini e dos Helal; os milionários que mataram a menina. Assumiu que Araceli fora morta por elementos da alta sociedade de Vitória, que contaram com a conivência e corrupção da polícia local.
 
ABI Online — Durante as investigações você também esteve na Bolívia.
Luppi — Quando Lola Cabrera foi solta e saiu do Brasil fui atrás dela em Santa Cruz de la Sierra, junto com o perito Dudu Cabral. Descobrimos que ela era casada aqui, com o Gabriel, e lá também com outro cara, cuja ex-mulher eu consegui localizar. Esta me passou o endereço da Lola e do ex-marido, que livrou a cara dela quando o entrevistei.
 
ABI Online — Como foi que você chegou ao pai da Araceli?
Luppi — Eu o encontrei em Uberaba e, depois de muito esforço, ele concordou em conversar comigo. A entrevista durou mais de dez horas e foi publicada na íntegra na Folha, causando grande repercussão. Aí a Veja, a IstoÉ e diversos outros veículos a repercutiram. Pela primeira vez o pai de Araceli, que não foi ouvido no inquérito, falou sobre o assassinato da menina.
 
ABI Online — O pai da menina fez alguma revelação importante?
Luppi — Disse que desconfiava da Lola, que achava que ela tinha envolvimento no crime, por ser amiga dos Michelini e dos Helal. Foi uma investigação longa. Depois, as reportagens foram publicadas na forma de livro, com o título “Araceli — Corrupção em sociedade”, vendendo 100 mil exemplares nas bancas de jornais. Essa apuração longa sobre o caso Araceli recebeu o Prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos; assim como outra série de reportagens que fiz intitulada “O País da pena de morte”, na qual eu denunciei diversos casos de assassinatos cometidos pelo grupo policial Rota, de São Paulo.
 
ABI Online — Qual foi o desfecho do caso?
Luppi — Baseado nos fatos, robustecidos pelas reportagens, o Juiz da 3ª Vara Criminal de Vitória, Hilton Silly, condenou Dante de Barros Michelini, seu filho Dantinho, Paulo Helal e Jorge Michelini.
 
ABI Online — A confiança do veículo no repórter ajuda em casos como estes?
Luppi — Eu tive muita sorte nesse sentido. Todos os quatro grandes jornais em que eu trabalhei — Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde — me protegeram e me deram força nas minhas investigações. A minha preocupação sempre foi a de denunciar, de trazer a verdade à tona.
 
ABI Online — Você sempre trabalhou as suas pautas com liberdade?
Luppi — Eu sempre tive liberdade para fazer as matérias. O único problema que eu tive foi na Folha, quando iniciei uma série de denúncias contra a corrupção do Governo Maluf, em São Paulo. Foi na época em que comecei a levantar toda a cortina de fumaça que tapava as torturas cometidas contra crianças internas das Febem paulistas. Ele sempre pediu a minha cabeça, mas a Folha o peitava. Até que eu saí do jornal e ele me processou.
 
ABI Online — A Justiça deu ganho de causa ao Maluf?B>
Luppi — Eu precisava de um advogado, mas a Folha não quis disponibilizar um advogado pra mim, apesar de o processo se referir às reportagens publicadas no jornal. Então, contratei do próprio bolso a advogada Maria Aparecida Pacheco, que fez a minha defesa brilhantemente. Resultado: não só ganhei a causa como recebi um voto de louvor do Tribunal pelas reportagens feitas (risos).
 

ABI Online — Como surgiu essa pauta sobre os maus tratos sofridos por crianças internas das unidades da Febem de São Paulo?

Luppi — Surgiu por acaso. Eu estava em uma festa familiar e uma das convidadas começou a se queixar, numa roda de conversa, das atrocidades que via em uma unidade da Febem em que trabalhava. Ela não sabia que eu era jornalista. Perguntei se poderia publicar o que ela disse. Ela permitiu. Então, marquei uma entrevista específica com ela no dia seguinte. Aí estourou o caso.
 
ABI Online — Quais eram as principais denúncias contra as Febens?
Luppi — Eram casos de tortura, espancamentos, estupro, pílulas de hormônios femininos que eram dadas a meninos internos e vice-versa. Atos de violação dos direitos humanos.
 
ABI Online — Foi isso que incomodou o Maluf?
Luppi — O Governo Maluf tentou desmentir todas as acusações. Então, conversei com o pessoal da Folha e decidimos investigar tudo, entrar de cabeça no assunto. Fiz um levantamento a nível nacional sobre jovens internos. Como eu viajava muito pra Amazônia, comecei a verificar a situação do menor lá também, a denunciar a Febem e a Funabem.
 
ABI Online — Quais foram as repercussões das suas reportagens?
Luppi — Cansei de ir ao programa da Hebe Camargo, que era muito minha amiga, denunciar o Mario Altenfelder, que presidia a Febem na época, e era pago pelo Unicef para fazer essa gestão cruel. Eu tenho umas 10 mil laudas de matérias sobre a situação do menor no Brasil, tema que me dediquei durante dez anos (1979-1990), que me rendeu o prêmio Jock Elliot de Direitos Humanos, pelos serviços prestados à humanidade.
 
ABI Online — É verdade que você é o único jornalista brasileiro ganhador deste prêmio?
Luppi — Concorri com jornalistas de 120 países, e fui o único brasileiro a receber esta homenagem. Este trabalho foi publicado em três livros: “Agora e na hora de nossa morte — O massacre do menor no Brasil”; “A cidade está com medo”, em parceria com o criminalista Técio Lins e Silva; e “Malditos frutos do nosso ventre”.  
 
ABI Online — Em que consistia o Brasil Jovem, programa que você denunciou nesta série de reportagens?
Luppi — Este programa consistia em formar um exército de repressão com menores internos da Febem de todo Brasil. A idéia era criar uma geração militarizada envolvida com a repressão política durante a ditadura militar, tendo o Médici à frente desta empreitada.
 
ABI Online — Como você descobriu esse projeto?
Luppi — Quando você se envolve neste tipo de reportagem, as pessoas começam a te procurar para fazer denúncias, você começa a pedir documentos, a analisar documentos, e essas coisas vão aparecendo. Eu lembro que era acordado de madrugada. Ligavam pra minha casa às 3h, para eu dar incertas em Febens do interior de São Paulo.
 

ABI Online — Quais eram as cenas mais comuns nessas unidades?

Luppi — Flagrei garotos comendo bosta e sendo espancados. Esse assunto dos atentados contra os direitos humanos de crianças e adolescentes no Brasil começou um caudal que não parou mais. Depois dessas reportagens, o assunto virou pauta permanente na imprensa brasileira.
 
ABI Online — Como você se sente por ter sido um dos pioneiros de um trabalho jornalístico dessa importância?
Luppi — Eu lembro que, enquanto estava apurando os casos, lia em jornais antigos as denúncias nesta mesma linha e percebia que davam uma nota apenas, sem muita repercussão, mesmo em casos graves. Esse trabalho me orgulha muito, pois as reportagens ajudaram a salvar muitas vidas de jovens no País. E, no escopo delas, criamos, junto com a Lia Junqueira e outros, o Movimento em Defesa do Menor de São Paulo, ligado à OAB paulista.
 
ABI Online — Você também denunciou a situação precária dos jovens no Norte do País.
Luppi — Fiz uma viagem de 26 dias de barco para o Alto do Rio Negro e verifiquei que tudo fazia parte das missões dos padres salesianos naquela região. Eles tratavam os índios a ferro e fogo e os obrigavam a adotarem a cultura cristã, em detrimento dos valores indígenas.
 
ABI Online — Muitas tribos eram afetadas por esse processo?
Luppi — Cerca de 17 mil índios da região, de várias tribos, perderam a identidade cultural. Com a opressão dos padres, eles iam para Manaus e se fixavam em favelas, entregues ao alcoolismo e ao subemprego.
 
ABI OnlineFale, por favor, sobre a situação dos jovens que você encontrou na Amazônia?
Luppi — Eu me deparei com diversos casos de meninas índias de 13 e 14 anos que iam trabalhar como domésticas na cidade, onde acabavam sendo estupradas por um filho da família, ficavam grávidas e eram expulsas da casa em que trabalhavam. Assim, entravam na prostituição. O que eu encontrei de indiazinhas se prostituindo em Manaus foi uma coisa assombrosa.
 
ABI Online — Você acabou tendo a oportunidade de denunciar um ciclo vicioso que afetava a comunidade indígena.
Luppi — Denunciei isto em várias reportagens e também no Tribunal Internacional Bertrand Russel, ligado aos direitos humanos, e houve uma condenação mundial das missões dos padres salesianos na Amazônia.

ABI Online — Apesar das freqüentes denúncias que fazia como repórter, você nunca sofreu represálias por parte do governo militar?
 
Luppi — Tive sorte neste sentido. Acho que nunca me pegaram, porque eu viajava muito pelo Brasil e pela América Latina. Mas eu era muito ameaçado, principalmente no caso Araceli.
 
ABI Online — Que tipo de ameaças você sofreu?
Luppi — Um dia eu fui a Vitória e falei no programa de grande audiência de uma rádio local que a cidade tinha o maior índice de covardes per capita do Brasil. Disse isso, porque em São Paulo, por causa das matérias, eu recebia vários telefonemas de pessoas me ameaçando. E falei também: “Agora que estou aqui, não aparece ninguém. Vou sair da rádio e vou para a praça Costa Pereira, ficar lá sentado no banco, vendo as meninas passarem”.
 

ABI Online — Apareceu alguém para te pegar (risos)?

Luppi — Não apareceu um babaca pra cumprir com as ameaças. Nessas ocasiões, você tem que se posicionar com firmeza também, se não é pior. O lado triste disso é que eu sei que perdi muito emprego por causa desse tipo de jornalismo de denúncia que eu fazia, muitas revistas deixaram de me contratar.
 
ABI Online — Por que você decidiu abandonar as redações no início dos anos 90?
LuppiSenti que não estava mais tendo espaço, pois era visto como um jornalista de muita contundência. Além disso, as redações, na minha opinião, estavam muito burocratizadas, buscando fontes de gabinetes, sem aquela investigação profunda que sempre gostei de fazer. Diante deste quadro, resolvi buscar outros caminhos dentro da Comunicação Social.
 
ABI Online — E o que você foi fazer para substituir o jornalismo?
Luppi — Fiz uns cursos de publicidade e comecei a trabalhar como diretor de criação em algumas agências. Fiquei muitos anos sem escrever, até que, em 1999, eu conheci o pensamento do líder budista Daisaku Ikeda, Presidente da Soka Gakkai Internacional, uma organização pacifista ligada à ONU, que dialoga com todas as correntes de pensamento no mundo. Ele prega a atuação direta na sociedade onde você está, a partir do comportamento próprio de cada um, o compromisso de cada um, visando à busca pela paz mundial.
 
ABI Online — E o que essa aproximação com o budismo modificou em sua vida?
Luppi — Lendo os escritos dele, eu percebi que toda a minha trajetória profissional no jornalismo estava ligada a este compromisso e comecei a redescobrir o sentido da minha vida. Compreendi que eu não havia sido jornalista por acaso. Através da imprensa, tive contato com o mundo, com o povo, com o Brasil, com a América Latina, com diversas situações de violência, tortura e desigualdade e tinha interferido diretamente nessas questões. Aí eu pensei que tinha que voltar a escrever, retomando este compromisso com a sociedade que sempre tive por meio da imprensa.
 
ABI Online — Foi esse sentimento que te levou a escrever o livro “Dinastia das sombras”, publicado em 2008? 
Luppi — A história desse livro está ligada à guerrilha do Araguaia, e à figura de mais um injustiçado, vítima da ditadura militar chamado Orlando Sabino.
 
ABI Online — Quem é Orlando Sabino e o que ele tem a ver com a guerrilha do Araguaia?
Luppi — Um pobre coitado miserável e sem família, que diziam ser o responsável pelos crimes, que na realidade foram praticados pelos agentes da ditadura na região do Triângulo Mineiro, em 1972.
 
ABI Online — O que você apurou dessa história?
Luppi — Em março de 1972, o Governo militar na última operação para acabar de vez com a guerrilha do Araguaia, ficou com receio de que os guerrilheiros fugissem pela região do Triângulo Mineiro e montou uma operação militar gigantesca para reprimi-los. Para justificá-la os militares começaram a cometer vários assassinatos aleatoriamente na calada da noite, a depredar fazendas, decepar bezerros. Criaram um clima de pavor na região e a figura de um monstro. Quando acabaram com a guerrilha do Araguaia, começaram a desmobilizar as forças de segurança em operação no Triângulo Mineiro em torno de Orlando Sabino. Não haveria mais perigo de os guerrilheros se instalarem em um novo foco de guerrilha na região do Triângulo.

ABI Online — Foi aí que pegaram o Orlando Sabino.

Luppi — Levaram-no para o batalhão de polícia de Uberaba, onde foi humilhado inclusive pela imprensa. Depois o levaram para o manicômio de Barbacena, onde tentaram em vão matá-lo duas vezes. Orlando Sabino está lá até hoje. É o mais antigo do manicômio. Trata-se de uma grande injustiça que não foi reparada. A esquerda se omitiu, assim como as entidades que lutam pelos direitos humanos, como o grupo Tortura Nunca Mais, a imprensa e o Governo atual. Talvez nem conheçam o caso do Orlando Sabino.
 
ABI OnlineO que faz um jornalista virar especialista em investigar casos considerados sem solução?
Luppi — O sentido de compromisso com a sociedade e a reflexão permanente do papel do jornalista em transformar a sociedade insustentável em que vivemos numa sociedade sustentável. Acho que o jornalista tem que ter um compromisso definido com ele mesmo. Mas também não deve pensar assim: “puxa vida, se eu não consegui mudar o mundo perdi meu tempo”.
 
ABI Online — E o que você acha da sua própria participação nesse processo?
Luppi — Eu, como jornalista, dei uma contribuição bacana para a sociedade, porque eu vivi intensamente meus dias na imprensa, e experimentei a vontade de exercer a consciência e o compromisso com as pessoas, com o povo brasileiro.