Documentos da ditadura em exibição no Rio


20/04/2011


O Arquivo Nacional vai abrigar até o dia 26 de agosto a exposição gratuita “Registros de uma Guerra Surda”, com centenas de documentos, fotografias e vídeos produzidos durante o período da ditadura no País, entre 1964 e 1985.
 
O acervo reúne registros da opressão, como sumários informativos, fichas de polícia técnica, relatórios de atividades dos cidadãos considerados subversivos, fotos de atividades ditas suspeitas, pareceres da censura, além das ações do Conselho de Segurança Nacional, da criação do SNI (Serviço Nacional de Informações), da implantação do sistema DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações — Centro de Operações de Defesa Interna) e de outros órgãos responsáveis pela censura à imprensa e às artes.
 
—A exposição tem como objetivo trazer luz para um período conturbado de nossa história recente, cujo conhecimento e reflexão são de fundamental importância para o aperfeiçoamento da democracia no Brasil, uma vez que a memória é um bem público que se encontra na base do processo de construção da identidade social, política e cultural de um país. Ao mesmo tempo, acredito que a exposição sugere e estimula o uso diversificado de fontes para reconstituição de fatos, localização de informações, análise de contextos e de processos políticos e sociais, analisa Jaime Antunes, Diretor-geral do Arquivo Nacional e Coordenador do Projeto Memórias Reveladas.
 
Além da documentação oficial, a mostra exibe os registros da resistência abrangendo o que foi produzido pelos órgãos de imprensa e pelas organizações que se dedicavam a combater o regime, evidenciando a realidade das prisões, as organizações da luta armada, o início do processo de abertura política, o retorno dos exilados e a campanha pelas eleições diretas.
 
—A exposição exibe uma gama variada de documentação, grande parte dela produzida pelos órgãos de repressão; fotos de vigilância do SNI (carros de indivíduos suspeitos de subversão; passeatas e lideranças estudantis); relatórios de comícios em prol da anistia, detalhando palavras de ordem ditas pelo povo e os discursos de palestrantes do comício; jornais estudantis apreendidos, fotografias de aparelhos clandestinos invadidos pela polícia; panfletos de grevistas apreendidos; fotografias de greves e repressão às greves, explica Viviane Gouvêa, curadora da exposição juntamente com Heliene Nagasava.
 
Entre os destaques da mostra estão o original do Ato Institucional nº 5, pela primeira vez exposto ao público, a ata de reunião do Conselho de Segurança Nacional que determinou a aprovação do Ato. As fichas de identificação de suspeitos, mapas e organogramas sobre o funcionamento de organizações clandestinas, fotografias de “aparelhos” das organizações clandestinas invadidas pela polícia, relatórios e fotos de vigilância dos suspeitos e manuais de instrução para agentes da inteligência.
 
Segundo Viviane, alguns destes documentos mostram como a repressão incidiu sobre os movimentos sociais:
—Isto pode ser observado através dos jornais estudantis apreendidos e alvo de proibição, como O Movimento; o parecer do Ministro da Justiça Alfredo Buzaid justificando a necessidade de censura incisiva junto aos meios de comunicação; o abaixo-assinado da OAB exigindo que casos de tortura, especificados e descritos no documento, sejam averiguados; o próprio Ato Institucional nº 5, que limitou barbaramente as liberdades civis, fotografias da invasão do Congresso da UNE em Ibiúna, em 1968, e da repressão às greves no ABC em 1979.
 
Heliene Nagasava destaca que para chegar ao formato em exibição ao público, o projeto da mostra foi ampliado:
—A ideia inicial era publicar a documentação que estava sendo trabalhada, tanto no Arquivo Nacional, como nas instituições parceiras. Devido a mudanças no projeto, o Arquivo Nacional abraçou a exposição, que tomou outros contornos, a quantidade de documentação aumentou, assim como a temática que seria abordada. Para além da ideia inicial de mostrar a estrutura da SNI e dos órgãos que ditavam as diretrizes da segurança nacional, passamos também a mostrar a resistência pelos olhos das agências governamentais, a propaganda institucional e a censura aos meios de comunicação, e por fim, a abertura política.
 
A documentação exposta ao público encontra-se sob a guarda do Arquivo Nacional e dos demais parceiros do Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985) – Memórias Reveladas, composta por instituições públicas e privadas, criado pelo Governo federal, sob a coordenação do Arquivo Nacional, com o objetivo geral de ser um polo difusor de informações contidas nos registros documentais sobre as lutas políticas no Brasil nas décadas de 1960 a 1980. Fontes primárias e secundárias são gerenciadas e colocadas à disposição do público, incentivando a realização de estudos, pesquisas e reflexões sobre o período.
 
Colaboraram para o acervo o Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul(AHRS), Arquivo Público Mineiro(APM), Arquivo Público do Estado de São Paulo(APESP), Arquivo Público do Estado do Rio do Janeiro(APERJ), Arquivo Público do Ceará(APEC), Arquivo Público do Estado do Maranhão(APEM), o Arquivo Público do Estado do Espírito Santo(APEES), Departamento do Arquivo Público do Paraná(DEAP), Centro de Documentação Arquivística da Universidade de Goiás(CIDARQ-UFG), e o Centro de Documentação e Memória da Universidade Estadual de São Paulo(CEDEM-UNESP).
 
De acordo com Viviane, os veículos de comunicação também contribuíram para a mostra:
—Recorremos aos acervos do Jornal Opinião e do Pasquim, que fazem parte do acervo do Arquivo Nacional; do Jornal do Brasil, parceiro do projeto Memórias Reveladas; do Correio da Manhã, tanto em fotografias, que se encontram no Arquivo Nacional, como com capas do jornal, cujo acervo se encontra na Associação Brasileira de Imprensa(ABI). O Arquivo Nacional e a ABI realizaram, há alguns anos, uma parceria que resultou na digitalização de parte do acervo dos jornais Correio da Manhã, que se encontram sob forma virtual no Arquivo Nacional.
 
A exposição se divide nos seguintes módulos: 

1- Institucionalização de um regime de exceção. A exposição abre com o golpe de 1964; emissão dos Atos Institucionais que pouco a pouco cercearam as liberdades políticas; estruturação do SNI, vigilância e serviço secreto; listas de cassados; o fechamento do Congresso Nacional.

 
2- Da repressão à reação. As greves e passeatas e a repressão a elas; prisão de manifestantes e militantes; organizações de luta armada: seqüestros, apreensões, prisões, atentados; guerrilha do Araguaia; censura às artes e à imprensa.
 
3- A face pública do regime. O terceiro módulo mostra a propaganda que os governos militares faziam de si mesmos. O milagre econômico; o patriotismo exacerbado em datas cívicas; o apoio de organizações civis.
 
4- O começo do fim. O início da abertura; a relutância do governo em abrir espaço para a democracia; o recrudescimento das greves e passeatas; imprensa alternativa; abertura gradual; movimento pela abertura e pela anistia; diretas já.
 
5-O projeto Memórias Reveladas. Ações regionais patrocinadas através do projeto Memórias Reveladas.
 
O trabalho de pesquisa e de imagem, que teve iníciou em meados de fevereiro de 2010, envolveu dezenas de pessoas:
— A curadoria da exposição foi formada por um grupo de seis servidores do Arquivo Nacional. Por outro lado, as equipes de trabalho do Arquivo fizeram um levantamento do material textual, sonoro, iconográfico e filmográfico. É importante ressaltar que o mesmo trabalho foi feito por cada parceiro que cedeu o acervo para a exposição. Após a concepção de cada módulo, tentamos mapear que documentos e imagens poderiam ser mais representativos em relação à documentação que estava sendo exposta pela primeira vez. A intenção era buscar documentos que poderiam trazer um novo olhar sobre a história do período e instigar a população a discutir temas como propaganda oficial, resistência à ditadura, monitoramento de movimentos sociais e violência, indivíduos considerados suspeitos, e tortura, assinala Heliene.
Paralela à exposição, está aberta ao público a mostra audiovisual com filmes, imagens de arquivo, curtas-metragem, produções independentes e registros pessoais sobre temas como repressão, militância, movimentos sindical e estudantil, propaganda ideológica, exílio, golpes militares na América Latina.
 
Dentro do material classificado como inédito, vale destacar os depoimentos de sobreviventes dos conflitos na região do Araguaia, produzidos pelo Arquivo Nacional, em 2009, com o apoio do Instituto de Ajuda aos Povos do Araguaia, e diversas músicas censuradas, com os respectivos pareceres, como a letra de “Bolsa de Amores”, de Chico Buarque de Holanda./DIV>

 
—A esperança do curador é que a exposição contribua para que os pesquisadores, de uma forma geral, tenham acesso ao acervo sobre a ditadura militar que se encontra não só no Arquivo Nacional, mas em instituições Brasil afora. Será possível, a partir deste acervo, abrir muitas frentes de estudo e investigação, e esperamos, principalmente, contribuir para que os brasileiros comecem a encarar esse período com maior interesse, e talvez, sob uma nova perspectiva, incentivando que as escolas e universidades introduzam esse debate de forma mais incisiva nas salas de aula. Pensando nisso, organizamos também a mostra de filmes, acentua Viviane.

Ações

Entre 2006 e 2010, o Arquivo Nacional atendeu a 8.508 requerimentos de consulta ao acervo de documentos da ditadura, que resultaram em 176.242 cópias de documentos entregues aos solicitantes. Cerca de 400 mil registros documentais já estão disponíveis para consulta no Banco de Dados do Memórias Reveladas, disponível no Portal do Memórias Reveladas no endereço www.memoriasreveladas.gov.br<http://www.memoriasreveladas.gov.br/>, onde também é possível acessar e baixar conteúdo gratuito sobre o período da ditadura militar, como livros, vídeos e multimídias. 
 
—É importante esclarecer, inicialmente, que um único registro no banco de dados pode conduzir o pesquisador a um fundo documental composto por centenas ou até mesmo milhares de documentos. O banco de dados Memórias Reveladas está sendo alimentado progressivamente.  Não há como definir o volume de documentos ainda não disponíveis à pesquisa, pois o universo de documentos não está delimitado – nem sequer é de todo conhecido. Sabemos, contudo, que esse é um trabalho de fôlego. A Rede Memórias Reveladas, gerenciada pelo Arquivo Nacional, é composta por mais de cinquenta parceiros, entre instituições públicas e privadas. Para que se tenha uma idéia do volume expressivo desses acervos, apenas o Arquivo Nacional tem sob a sua guarda, tanto na sede da instituição no Rio de Janeiro como em sua Coordenação Regional no Distrito Federal, cerca de 17 milhões e 400 mil páginas (aproximadamente 8 milhões e 900 mil folhas) de documentos textuais, além de 1.363 mil metros lineares de outros tipos documentais (como, por exemplo, fotografias e mapas), 220 mil microfichas e 110 rolos de microfilmes.
Cabe ressaltar que a documentação sob a guarda do Arquivo Nacional está disponível para consulta presencial ou à distância, nos termos da legislação que trata da matéria, frisa Jaime Antunes.
 
Em relação às críticas relacionadas à abertura dos arquivos da ditadura, o Diretor-geral do Arquivo Nacional e Coordenador do Projeto Memórias Reveladas lembra que diversas medidas estão sendo tomadas para garantir o acesso à informação pública:
—Uma iniciativa como o projeto Memórias Reveladas não poderia vir desassociada de uma revisão crítica da legislação nacional no tocante ao acesso à informação, uma vez que o acesso a informação pública é indispensável ao exercício da cidadania, como demonstra a prática democrática no Brasil e em outros países. Nesse sentido, o Governo Federal encaminhou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 5228/2009 (atualmente, PLC 41/2010), com o objetivo de regular o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5º da Constituição Federal de 1988. Recentemente, o Ministro de Estado da Justiça, José Eduardo Cardozo, assinou a Portaria 417, de 5 de abril de 2001, que regulamentou o procedimento de acesso aos documentos do período da ditadura militar no Arquivo Nacional. A portaria, ainda que obedeça aos limites da atual legislação sobre o assunto, foi importante porque padronizou práticas e esclareceu as possibilidades de atuação do Arquivo Nacional. Sobre o assunto, é interessante apontar que o Ministro Cardozo já demonstrou, publicamente, que está comprometido com o tema e, também, com a elaboração de uma proposta de decreto que estabeleça regras claras e equilibradas sobre o assunto, protegendo a intimidade das pessoas, mas também garantindo o acesso à informação de forma mais ampla possível. Decretos similares já foram editados nos estados de São Paulo, Paraná e, por sugestão do Conselho Nacional de Arquivos (Conarq), órgão ligado ao Arquivo Nacional, também nos Estados de Alagoas e Paraíba.
As próximas ações para o projeto Memórias Reveladas e para o Arquivo Nacional já estão definidas, ressalta Antunes:
—A alimentação do banco de dados Memórias Reveladas está sendo realizada progressivamente. No Brasil inteiro há pessoas trabalhando em atividades de higienização, organização, descrição, digitalização e difusão desses acervos. Da mesma forma, prosseguem, no Brasil, as buscas por dados e fontes que projetem luz sobre o período da ditadura militar instalada em 1º de abril de 1964. Basta lembrar que recebemos, ano passado, cerca de 50.000 documentos do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica. Essa documentação estava desaparecida. O Arquivo Nacional possui o telefone gratuito 0800-7012441, para informações sobre acervos de interesse para o Memórias Reveladas. O sigilo da fonte é garantido, pois o que nos interessa é garantir a preservação e difusão das informações contidas nesses acervos. Cabe citar também a criação do Prêmio de Pesquisa Memórias Reveladas, cuja edição 2010 já premiou três trabalhos acadêmicos que utilizaram fontes do período de 1964-1985. Esses trabalhos serão publicados pelo Arquivo Nacional. Uma nova edição do Prêmio terá lugar em 2012. Essas ações, somadas à revisão crítica da legislação nacional sobre o assunto, são marcos no processo de democratização do acesso a informação no Brasil, e contribuem, também, para a construção de uma política nacional de arquivos e de valorização do patrimônio documental nacional.