Discurso da Presidente Nelly Martins Ferreira Candeias


03/09/2008


Quero manifestar meu entusiasmo e regozijo por estarmos aqui reunidos para evocar a história da imprensa no Brasil, porque é a imprensa que perpetua a história, sem o quê não estaríamos aqui reunidos.

Várias comemorações têm marcado o IHG-SP neste ano: os 400 anos da morte do Padre Antonio Vieira, os 200 anos da vinda da família real para o Brasil, os cem anos da imigração japonesa e, na data de hoje, os 200 anos da Imprensa Régia e cem anos da Associação Brasileira da Imprensa.

Eu gostaria de incluir nesta cerimônia, por considerar oportuno, os 20 anos da Constituição de 1988, que muito têm a ver com o que aqui se relata.

Tomei posse como Presidente deste instituto 108 anos depois de sua criação e um ano após a minha aposentadoria como professora titular da Universidade de São Paulo. Desde o início da minha gestão, em 2002, preocupei-me com a arte invisível da entidade — o fato de raramente se mencionar, nas sessões solenes e em outros eventos que aqui se realizavam, os nomes de mulheres que integraram o nosso quadro social.

Ao contrário, realçava-se a história de homens ilustres, membros desta entidade, cujas memórias se perpetuavam em telas, fotos, diplomas, medalhas, condecorações, bustos, estátuas, selos, carimbos, livros, artigos publicados em nossa revista, recortes de jornais, tudo cuidadosamente arquivado.

Com o tempo, e merecidamente, nossos eminentes sócios passaram a ter seus nomes registrados em nomes de ruas, avenidas, praças e outros logradouros nesta cidade, no estado de São Paulo, e até em outros estados do Brasil.

Como Presidente e em busca de uma linha de pesquisa, passei a rever as fichas dos sócios do IHG-SP. Foi assim que encontrei, e exumei, o nome da primeira mulher a tomar posse nesta Casa, Marie Rennotte, cujo ingresso deu-se em 4 de maio de 1901 e cuja vida estudei intensamente.

Quem era essa mulher? Marie Rennotte nasceu na Bélgica, em 1852. Fez o curso de Magistério em Paris, onde se formou com distinção, e chegou ao Brasil em 1878, aos 26 anos. Em 1882, por solicitação da famosa professora metodista Martha Watts, foi para o interior de São Paulo, onde trabalhou no Colégio Piracicabano, escola metodista cujo principal objetivo era a instrução feminina. Ambas dedicaram-se de corpo e alma ao trabalho pedagógico de organização de um ensino moderno. O Colégio rompeu os grilhões do ensino feminino, voltado para o bastidor, agulhas e receitas culinárias, tudo o que de forma genérica se denominava de “bons modos”, introduzindo em seu programa curricular disciplinas como Álgebra, Aritmética, Literatura, Línguas, Botânica e Música — um perigo para a moral da época.

Por sua visão humanística e excepcional cultura, Rennotte passou a colaborar também na Gazeta de Piracicaba, imprensa republicana, coordenada por Prudente de Moraes, amigo por quem ela sentiu justificada admiração. Naquele periódico, deixou textos de essência variada sobre educação científica, escolaridade e formação da juventude, contribuição que teve forte impacto regional.

Acentuou-se naquele século a consciência da injustiça a que eram submetidas as mulheres e a rápida disseminação dos escritos dos ideólogos franceses, particularmente de Olympe de Gouges e Condorcet, deu origem à imprensa feminina no Brasil. Suas colaboradoras passaram a prever, no regime republicano, a mudança redentora de suas injustas condições.

Rennotte compareceu com matérias doutrinárias no jornal A Família e na revista A Mensageira, publicados na cidade de São Paulo, ao lado de outras mulheres predestinadas, como ela, a compor um quadro de inteligência nacional na passagem do século XIX para o século XX.

Em 1891, a reivindicação feminista concentrou-se no direito de voto, já pressupondo a óbvia elegibilidade das candidatas. Para infortúnio geral, os constituintes republicanos não concederam voto às mulheres e a exclusão continuou sendo o principal instrumento de dominação durante a República Velha. Os esforços despendidos pareciam ter sido em vão.

Em 1889 e aos 40 anos, Marie Rennotte foi para a Filadélfia com o intuito de se formar em Medicina, tendo freqüentado o Women’s Medical College of Pensilvânia, onde obteve seu diploma como médica.

De regresso ao Brasil, a Doutora Rennotte dedicou-se à prática da medicina e, após defender brilhante tese, passou a dirigir a Maternidade São Paulo, tendo trabalhado também na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo com o ilustre médico Arnaldo Vieira de Carvalho.

Fato raro na época, foi a única mulher a ter consultório médico na cidade de São Paulo, exemplo para outras que nela se inspiraram, como relata em suas memórias a médica Carlota Pereira de Queirós, a primeira Deputada da América Latina, também membro desta Casa.

Sua postura profissional, assim como seus escritos, contribuíram para promover e fortalecer o feminismo em São Paulo e a ânsia de as mulheres terem justo acesso ao ensino superior e a cargo públicos. Ainda hoje seu pensamento conserva inegável atualidade. Não admira pois que seu nome tenha sido indicado, em 1901, como a primeira mulher a ingressar nesta Casa. Marie Rennotte faleceu em novembro de 1942. Não chegou a ver os resultados de seus esforços.

Somente depois da Constituição de 1988 as mulheres brasileiras começaram a sentir o tênue aroma da plena cidadania.

Einstein dizia que “a teoria só encontra aquilo que procura”.

É verdade . O que não se procura não se reconhece ou não se vê, por isso meu empenho em salientar e divulgar neste momento a parte menos visível da história desta Instituição.

Por fim, quero referir-me à Teoria do Caos, que tem como uma de suas mais conhecidas bases o denominado efeito borboleta, teorizado pelo matemático Edward Lorenz, em 1963. Segundo ele, o bater de asas de uma borboleta pode causar um tufão em outra parte do mundo, porque tudo se encontra interligado e qualquer pequena ação pode ter enormes conseqüências.

E é isso o que estamos assistindo neste momento, ao alegre efeito do bater de asas de uma borboleta, atingindo toda a humanidade e não mais a metade apenas do gênero humano.

Agradeço a presença de todos neste momento em que a imprensa e a história se entrelaçam no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.