16/02/2025
Com informações da Agência Brasil
“Se o Estado foi capaz de manter tantos lugares para torturar, que seja também capaz de manter tantos espaços para educar em direitos humanos”. Assim o procurador Eduardo Valério defendeu no sábado (15) a criação do Memorial no antigo DOI-Codi, alvo de disputa entre o governo paulista, responsável pelo local, o Ministério Público e as entidades da sociedade civil, que clamam por sua construção.
A manifestação foi feita durante worshop realizado no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo, na capital paulista, para discutir a importância de se construir um memorial nas antigas dependências do que foi o maior centro de tortura do país, coordenado pela historiadora Deborah Neves, do GT Memorial DOI-Codi.
Subordinado ao Exército, o Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi funcionou entre 1969 e 1982 na Rua Tutóia, na região do Paraíso, em São Paulo. O DOI-Codi foi o maior centro de repressão política do país durante a ditadura, local de tortura, assassinatos e violações de direitos humanos. Comandado pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, estima-se que no local morreram ao menos 60 presos políticos. Foi ali que, em 1975, foi assassinado o jornalista Vladimir Herzog.
Neste local, atualmente funciona uma delegacia de polícia. “Isto é um escárnio”, disse Adriano Diogo, que presidiu a Comissão Estadual da Verdade da Assembleia Legislativa de São Paulo e esteve preso no DOI-Codi por 90 dias durante a ditadura militar. “É a mesma coisa que você manter uma unidade policial dentro de um campo de concentração”, acrescentou, em entrevista à Agência Brasil.
Há anos movimentos clamam para que o local se torne um memorial dedicado a promover reflexões sobre a ditadura no país. Em 2014, a comissão conseguiu que os prédios que compõem o complexo do DOI-Codi fossem tombados pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat). Apesar disso, a criação dele não se concretizou até hoje. “O memorial serviria para que, ao menos, se atenuasse ou se desse um processo civilizatório a um período tão cruel da história do Brasil”, ressaltou Adriano Diogo.
“A ideia básica é transformar o espaço que foi de violação de direitos humanos em um espaço de memória, de enaltecimento da democracia e de enfrentamento à tortura. Seria um espaço de prevenção para que isso não se repita e também de educação em direitos humanos”, disse Valério.
Em 2021, a Promotoria de Direitos Humanos do Ministério Público de São Paulo ajuizou uma ação civil pedindo para que o governo de São Paulo transfira o prédio, que pertence atualmente à Secretaria de Segurança Pública, para a Secretaria de Cultura. Foi uma ma tentativa de conseguir concretizar o memorial. Mas isso ainda não aconteceu.
A ação civil pública, informou Valério durante o evento, encontra-se atualmente suspensa, em busca de acordo das entidades com o governo de São Paulo. “Estamos na busca de um acordo naquela perspectiva de que uma decisão judicial, fora o seu caráter incerto, transferiria para o Poder Judiciário uma decisão sobre assunto muito sensível e que, seguramente, não integra a pauta do Judiciário brasileiro”, disse. “A ideia é investir o máximo que for possível num acordo extrajudicial e que poria fim à ação e impediria que ela fosse remetida para outras instâncias do Judiciário”, ressaltou.
No entanto, segundo o procurador, o governo de São Paulo não tem se mostrado favorável ao acordo sobre o assunto. Em 2023, em entrevista ao jornal Valor Econômico, a atual secretária estadual de Cultura, Economia e Indústria Criativas, Marília Marton, declarou ser contra a construção do memorial.
Segundo a secretária, isso geraria gastos ao governo, e alegou que já existe um memorial contra a ditadura em funcionamento na capital paulista, o Memorial da Resistência. “Estamos falando de recurso público. Precisa perguntar para os paulistas que pagam os impostos do Estado se, além do Memorial da Resistência, há interesse histórico de pegar o seu recurso – que não é da secretaria de Estado, não é do governo do Estado, mas de todos os paulistas”, afirmou, na ocasião.
Para Eduardo Valério, no entanto, se o governo foi capaz de criar os centros de tortura no passado, deve também ser capaz de criar os centros de memória no presente. “Se o estado brasileiro foi capaz de fazer tantos centros de tortura e de desaparecimento forçado, que seja capaz também de fazer tantos centros de recuperação da memória, de preservação da memória e de educação e direitos humanos”, ressaltou.
“Ali [no DOI-Codi], foram feitos os testes. Ali, foram feitas as experimentações não só da tortura em si, mas também do funcionamento da promiscuidade entre empresa e Estado e grupos paramilitares. Então, é muito importante entendermos que este memorial não pertence ao governo do estado de São Paulo ou ao governo federal, ele pertence ao povo brasileiro. É um patrimônio da humanidade e como tal deve ser visto”, destacou Flávio de Leão Bastos Pereira, representante do Núcleo da Memória da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
Enquanto o memorial não é criado, o Núcleo de Preservação da Memória Política tem desenvolvido visitas guiadas e mediadas ao local. Além disso, todos os anos, desde 2013, eles fazem uma manifestação cultural na frente do DOI-para homenagear as pessoas que morreram neste local. “Se o Estado resolve não fizer nada, nós vamos dar visibilidade ao local”, disse Maurice Politi, fundador e diretor do Núcleo de Preservação da Memória Política.
“Hoje temos três visitas por mês no local. A gente calcula que estamos recebendo a visita de cerca de 600 ou 700 pessoas a cada ano”, disse, durante o evento. “O objetivo do Núcleo Memória, ao fazer isso, é contar sobre o período, com auxílio de testemunhas sobreviventes do local e também formar pessoas mais conscientes e críticas, que reflitam sobre os abusos do poder, as perseguições e os assassinatos ocorridos nesse período”, enfatizou.
Procurada pela Agência Brasil, a Secretaria de Cultura informou que o antigo prédio do DOI-Codi pertence à Polícia Civil, que é responsável por sua manutenção e preservação. “Quanto ao espaço se tornar um museu, a Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas já conta com um equipamento dedicado a preservação da memória desse período, com amplo acervo, que é o Memorial da Resistência”, informou a pasta.
Que Memorial queremos
Na parte da tarde, antes da divisão em grupos por eixos temáticos – Acervo, Espaço, Museografia e Educativo, para iniciar um debate sobre um plano museológico para o futuro Memorial, o diretor de Jornalismo da ABI, Moacyr Oliveira Filho, que foi preso e torturado no DOI-Codi, em maio de 1972, e integra o GT Memorial DOI-Codi, apresentou, em nome de um grupo de ex-presos políticos, algumas ideias sobre o uso daquele espaço.
“O Memorial DOI-Codi é uma homenagem às vítimas da ditadura, da tortura, dos mortos e desaparecidos, e deve, necessariamente, refletir esse ambiente de terror que ali funcionava. A “sucursal do inferno”, como gostava de alardear o então major Carlos Alberto Brilhante Ustra, seu comandante mais notório. Seu acervo, com os devidos cuidados museológicos, visuais e estéticos, deve apresentar esse clima de terror ao visitante, que deve ser previamente avisado disso”, argumentou.
Nesse sentido, os ex-presos sugerem que as celas e a principal sala de tortura, que ficava no prédio onde funciona a Delegacia, hoje descaracterizadas por várias reformas, sejam reconstituídas como eram na época, que na sala de tortura sejam colocados um pau de arara, uma cadeira do dragão, uma “pimentinha”, como era chamada a máquina de choque, e um capuz, que sejam colocadas fotos de todos os 78 mortos, com suas respectivas biografias, com uma iluminação especial, além da reprodução de fichas de identificação de alguns dos presos, da grade de presos, declarações de próprio punho, entre outros, e exibição de vídeos com depoimentos de ex-presos.
Ele falou também sobre os sons do DOI-Codi: o barulho das chaves nas mãos dos carcereiros e o rádio em alto volume, que indicavam que alguém seria torturado, e a cantoria da Canção do Pescador – “Minha jangada vai sair pro mar, vou trabalhar, meu bem querer, se Deus quiser quando eu voltar do mar, um peixe bom eu vou trazer, meus companheiros também vão voltar, e a Deus do céu vamos agradecer”, entoada por todos os presos, sempre que alguém ia ser solto ou transferido para outro lugar. “O som da resistência e da solidariedade”, definiu.
“E os torturadores? O que fazer com eles? Não temos isso claro, mas devemos pensar num espaço onde seus nomes e codinomes seriam relacionados, vinculando-os aos assassinatos pelos quais são os principais responsáveis, e, quem sabe, fotos dos mais notórios”, concluiu.