Comissão Nacional da Verdade entrega relatório final na próxima quarta


08/12/2014


Depois de dois anos e meio ouvindo militares, civis e colhendo documentos referentes ao regime militar, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) entregará na próxima quarta-feira, 10 de dezembro, à presidente Dilma Rousseff o relatório final sobre as conclusões de seus trabalhos. O documento, com cerca de 2 mil páginas, recomendará punição civil, administrativa e criminal para suspeitos de serem responsáveis pela violação de direitos humanos na ditadura.

O documento aponta aproximadamente 380 militares como responsáveis por crimes de lesa humanidade em razão das violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988, no período da ditadura militar. A CN recomenda que eles sejam responsabilizados criminal ou civilmente, de acordo com as provas obtidas sobre cada um. Sobre civis que participaram do regime, também são citados, mas a Comissão não recomenda a punição, com exceção de agentes da Polícia Civil. O documento pede ainda que a Lei da Anistia não seja mais aplicada.

Os militares são citados em três categorias: autores políticos institucionais (quando não houve relação direta com o crime, mas consciência do ocorrido); responsáveis pela gestão de órgãos, como os comandantes de quartéis; e autores diretos de crimes contra a humanidade. Nessa categoria, são citados quase 200 agentes do Estado.

Número de mortos

Segundo a assessoria do órgão, o relatório apontará 434 mortos e desaparecidos políticos, o que amplia em 72 nomes o total de 362 registrados pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

A Comissão da Verdade foi criada pela Lei 12.528/2011 e instituída em maio de 2012 por Dilma. Durante os últimos anos, foram colhidos 1.120 depoimentos – 132 de agentes militares –, produzidos 21 laudos periciais e realizadas 80 audiências públicas em 15 estados. No período de funcionamento da comissão, foram feitas sete diligências em Minas Gerais, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo.

Entre as pessoas ouvidas pela CNV nesses dois anos e meio, estiveram o coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra, que chefiou o Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) do II Exército; o general reformado José Antonio Nogueira Belham, que comandou o DOI-Codi do Rio de Janeiro; e o coronel Paulo Malhães, morto neste ano, e que admitiu ter participado de torturas e mortes durante o regime militar.

Punição

O jurista Pedro Dallari, coordenador da Comissão da Verdade, afirmou que o relatório pedirá a punição aos agentes da ditadura em razão de o colegiado ter provas “robustas” da participação dessas pessoas em casos de tortura, execuções e ocultação de cadáveres. Na avaliação de Dallari, os trabalhos da comissão foram positivos e ele diz que o documento está além de questões político-ideológicas.

“Nós não somos uma comissão jurídica. Embora a maioria dos integrantes seja de pessoas da área do Direito, nós não fomos mandatados para exarar posições júridicas. Nós não somos um órgão jurídico. Nossa atribuição foi apurar o fato em si e propor recomendações. O fato que se revelou é um quadro muito grave de graves violações dos direitos humanos, torturas, execuções, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres”, disse Dallari.

Segundo ele, as cerca de 2 mil páginas do documento que serão entregues à presidente Dilma Rousseff “deixarão claro” que os trabalhos da comissão não tiveram viés ideológico.

Para o coordenador da CNV, o documento precisa ser “amplamente” divulgado, para que a sociedade brasileira e as famílias de vítimas do regime tenham conhecimento do que ocorreu no período da ditadura. “E é até capaz que o leitor ache nossas conclusões tímidas, pelas provas que vamos apresentar”, avalia.

Dallari afirmou ainda que o fato de ter sido criado na CNV um departamento de perícia técnica permitirá, segundo avalia, que a comissão não seja acusada de ter produzido um documento “contra militares”, mas, sim, segundo ele, que mostre o que ocorreu no país durante o regime e ainda não havia sido divulgado.

Insatisfação dos militares

O sentimento existente na cúpula das Forças Armadas, às vésperas da divulgação do relatório da Comissão Nacional da Verdade, é de irritação e insatisfação. Os ataques feitos aos militares por integrantes da comissão, que insistem que os comandos das Forças têm de reconhecer que cometeram violações aos direitos humanos, o que é rechaçado por todos, incomoda muito os oficiais-generais da ativa, segundo depoimentos reunidos pelo Estado.

Os militares desqualificam o trabalho que está sendo realizado, alegando que a comissão agiu de forma “unilateral”, desprezando o “outro lado da história”. Para os militares, a comissão funcionou como um “tribunal de exceção” que quer “empurrar goela abaixo dos brasileiros uma história que não é verdadeira porque só tem um lado”. Um dos generais ouvidos pelo Estado afirmou que isso não cabe e não pode ser aceito em um país democrático como o Brasil.

Para Dallari, o reconhecimento das Forças Armadas dos erros cometidos no passado seria o melhor antídoto contra a possibilidade de voltarem a ocorrer graves violações de direitos humanos no País. “Enquanto as Forças Armadas não reconhecerem isso de maneira franca e cabal, vai ficar sempre no ar a suspeita de que aquele quadro trágico possa voltar a ser uma alternativa para certos setores da sociedade brasileira”, afirmou Dallari.

Segundo Dallari, “ao reconhecerem que houve algo inadequado, que não deveria ter ocorrido”, as Forças Armadas estariam solidificando “o compromisso delas com a democracia”. Ele disse não ter dúvida do compromisso dos militares nos dias de hoje com a democracia: “A vocação democrática atual das Forças Armadas é indiscutível. Mas é importante que isso seja visto como algo permanente.”

Lei de Anistia

O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Marcus Vinicius Coêlho, disse que a instituição entrará com nova ação no STF pedindo o julgamento de militares na própria quarta-feira, usando o relatório da CNV para fundamentar seu pedido de revisão da Lei da Anistia.

Militares envolvidos em crimes como tortura e desaparecimento de corpos nunca foram julgados porque a lei anistiou crimes praticados entre 1961 e 1979, tanto pelo regime militar quanto por militantes contrários à ditadura. Para que hoje torturadores possam ir ao banco dos réus, é preciso que o STF modifique sua interpretação da lei ou que o Congresso altere a redação da mesma.

A grande controvérsia é se crimes comuns, como tortura, assassinato, ocultação de cadáver e estupro, deveriam ser perdoados. A Lei da Anistia prevê o perdão a todos que “cometeram crimes políticos ou conexos” e define como conexos “os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”. Até hoje, prevaleceu a interpretação de que os crimes como tortura são atos conexos.

Em abril de 2010, o STF já havia se manifestado contrariamente à revisão da Lei da Anistia em resposta a outra ação movida pela OAB. No entanto, depois disso, em novembro do mesmo ano, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil ao julgar abusos cometidos pelo Estado na repressão à Guerrilha do Araguaia, foco de resistência armada à ditadura militar que operou na região amazônica.

A corte decidiu que a Lei da Anistia é “incompatível com a Convenção Americana” e “não pode continuar sendo um obstáculo à investigação (…) de casos graves de violação de direitos humanos” no Brasil.

Na avaliação da Corte Interamericana, esses são crimes contra a humanidade que não podem, portanto, ser perdoados ou prescrever (quando esgota-se o prazo máximo para um crime ser julgado, limite que no Brasil vai até 20 anos, dependendo do caso).

O Brasil aderiu à Convenção Americana em 1992. Seu artigo 68 determina que os países que assinarem o texto “comprometem-se a cumprir a decisão da Corte em todo caso em que forem partes”. Em outubro deste ano, a Corte Interamericana publicou uma resolução cobrando que o Brasil cumpra sua decisão.

Desde 2010, quando o placar no STF foi de sete votos contra e dois a favor da revisão da Lei da Anistia, houve mudanças na composição do tribunal. Cinco ministros se aposentaram: três tinham se manifestado contra (Eros Grau, Ellen Gracie e Cezar Peluso), um a favor (Ricardo Lewandowski) e Joaquim Barbosa não havia participado porque estava de licença médica.

*Com informações do G1, Estado de Minas, Agência Estado, BBC Brasil e Portal Brasil 247.