“Bonitinha, mas ordinária”, de Nelson Rodrigues, reinicia as atividades do Teatro ABI


Por Cláudia Souza

03/11/2015


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Atores da peça de Nelson Rodrigues em cartaz no Teatro ABI / Divulgação

O clássico da dramaturgia brasileira está em cartaz no Teatro ABI  às sextas-feiras e aos sábados, às 19h, no Auditório Oscar Guanabarino, no 9º andar do edifício-sede da Associação. O espetáculo, que será encenado até 20 de dezembro, retoma as atividades do Teatro ABI, organizadas pela Diretoria de Cultura e Lazer da Casa, tendo à frente o jornalista, teatrólogo e cineasta Jesus Chediak.  No palco 19 atores e participação especial de Sacha Rodrigues, que pela primeira vez no teatro interpreta o papel do avô, o jornalista, escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues.

— “Otto Lara Resende, ou Bonitinha, mas Ordinária” tem como objetivo principal levar aos palcos um texto reflexivo e provocativo que pretende estimular o espectador a levantar questionamentos sobre a temática abordada, principalmente no que tange às relações humanas. Nelson Rodrigues é genial. Seus personagens são únicos, delirantes e reais porque ele tem coragem, porque sublimou na arte um histórico de dor, fome e tragédia, destaca a diretora Ana Zettel.

O eixo central da história gira em torno de Maria Cecília, filha caçula do empresário Heitor Werneck, que foi violentada sexualmente. Com a intenção de esconder tal acontecimento, Werneck pede ao genro, Peixoto, que encontre um marido para a filha entre os funcionários da empresa. O escolhido é Edgar, rapaz humilde, funcionário da firma há 11 anos. Edgar fica dividido entre o casamento por dinheiro com Maria Cecília, e a fidelidade ao seu verdadeiro amor, a vizinha Ritinha.

— Busco uma linguagem expressionista na qual a radiografia e não a fotografia é o centro da cena. O operístico, o grandioso, o trágico, o poético e o cômico retratam a realidade cotidiana, sem muitos matizes. Essa é a lógica da loucura, portanto muito real. O figurino assinado por Constança Whitaker e Rafa Guimarães é datado e atemporal, em identidade com o próprio Nelson Rodrigues, explica Ana Zettel.

“Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária” está inserida na obra de Nelson Rodrigues na categoria de “Tragédias Cariocas”, a única com um final feliz.

— A narrativa traduz uma reflexão obsessiva sobre a condição humana e as possibilidades do homem de mudar a realidade e transformar sua história. Convido a todos a darem uma olhada no buraco da fechadura que Nelson Rodrigues, o “Anjo Pornográfico” nos apresenta, sublinha a diretora.

Tragédia

Mário Rodrigues, o patriarca da família, fundou em 1925, no Rio de Janeiro, o jornal “A Manhã”, onde Nelson Rodrigues iniciou a carreira jornalística aos 13 anos. Em 1929, tendo perdido “A Manhã” para o sócio, Mário Rodrigues lançou “Crítica”, cenário do assassinato de Roberto, um dos quatro irmãos de Nelson.

Nelson Rodrigues (Foto: Acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo)

Nelson Rodrigues (Foto: Acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo)

O crime ocorreu por conta de uma reportagem publicada em “Crítica”  sobre o divórcio de uma mulher da alta sociedade. O motivo não alegado publicamente seria adultério. Quando soube que a matéria sairia no jornal, Sylvia Seraphim foi até a redação para tomar satisfações. Roberto Rodrigues que sempre tivera inclinação para as artes plásticas, trabalhava no jornal como ilustrador, enquanto os irmãos Milton, Mário Filho, Nelson e Joffre eram responsáveis pelas matérias.

Roberto recebeu a mulher, que sacou o revólver de dentro da bolsa e atirou. Roberto morreu após três dias de internação.

Mário Rodrigues, inconformado com a perda do filho, morreu cerca de dois meses depois.

Milton e Mário Filho assumiram o jornal, que foi fechado pela polícia  por determinação do governo, após a vitória de Getúlio Vargas nos anos 1930. A família Rodrigues enfrentou o drama da fome e da miséria.

Em um trecho do livro “Memórias”, Nelson Rodrigues descreve:  “eu e minha família conhecemos uma miséria que só tem equivalente nos retirantes de Portinari”.

Nelson Rodrigues foi internado em duas ocasiões com  tuberculoses, e o irmão Joffre morreu em 1936, aos 21 anos, em decorrência da mesma doença. Joffre era o irmão mais próximo de Nelson.

Ainda em 1936, Mário Filho associou-se ao “Jornal dos Sports” para o qual Nelson passou a colaborar com textos sobre futebol, tendo trabalhado em seguida para diversos jornais como “Correio da Manhã”, “O Jornal”, “Última Hora”, “Manchete Esportiva” e “Jornal do Brasil”, assinando crônicas, contos, correio sentimental, folhetins, comentários esportivos e artigos.

Em 1941 “A Mulher Sem Pecado”, texto teatral de Nelson Rodrigues, estreou nos palcos.

A grande aclamação veio com a encenação de “Vestido de Noiva”, dirigida por Ziembinski. Apesar das grandes polêmicas em torno das obras posteriores e dos problemas enfrentados com a censura, o talento do dramaturgo Nelson Rodrigues foi reconhecido e aplaudido por público e crítica.

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Sacha Rodrigues, primeiro à esquerda no sentido horário, em uma cena da peça

Em entrevista concedida ao jornal “O Globo” Sacha Rodrigues fala sobre a participação no espetáculo, e conta historias sobre a família e seu relacionamento com o avô:

“As lembranças que o ator e produtor tijucano Sacha Rodrigues tem do avô Nelson remontam à infância. Ele passou parte da juventude na Itália por causa do pai, Joffre, então representante do Instituto Brasileiro do Café, e tinha 9 anos quando o jornalista e escritor faleceu. Na memória, ele retém momentos de ternura que pouco combinam com a aura de polêmico e introvertido que sempre acompanhou a trajetória do maior dramaturgo brasileiro.

— Vínhamos ao Brasil pelo menos duas vezes ao ano. Ele nunca viajou à Europa porque tinha medo de avião, embora convites nunca faltassem. Então, ele me pedia para falar italiano, e eu não o fazia, por vergonha, mas é uma dívida que um dia, de alguma maneira, ainda espero sanar— afirma.

Do avô, Sacha guarda também a primeira bandeira de um clube de futebol que ganhou. E não era do Fluminense: Sacha torce pelo Flamengo, como o tio Mario Filho, que empresta seu nome ao Maracanã. Registrado como Nelson Vinícius, ele acha que não seria merecedor de perdão se, além do parentesco com o Anjo Pornográfico e da herança do nome, levasse adiante uma carreira profissional na mesma área com um time diferente.

— Um dia disse a ele: “Vovô, sei que o senhor é Fluminense, mas eu gosto do Flamengo”. E ele respondeu: “Tudo bem, meu filho. Mas vista bem essa camisa porque ela pesa bastante”. Hoje digo que sou rubro-negro, com a anuência do maior dos tricolores. Mas, no campo profissional, embora faça incursões como ator, eu me sinto mais um produtor — explica.

As lembranças do avô se tornaram mais presentes há três meses, quando Sacha recebeu o convite para interpretar o dramaturgo em “Otto Lara Resende ou bonitinha mas ordinária”. Ele mergulha na memória e no texto da montagem, uma pouco ortodoxa homenagem de Nelson Rodrigues ao amigo jornalista e escritor nascido em São João del Rey (MG), a quem Nelson atribuiu a máxima “O mineiro só é solidário no câncer”. Otto não gostou da homenagem e praticou a vingança que estava ao seu alcance: nunca foi ver a peça.

— Meu avô e o dramaturgo Nelson Rodrigues eram pessoas muito diferentes. Ele era um provocador, mas muito amoroso. Dizia que todas as mulheres gostavam de apanhar, e todos imaginavam que ele batia na minha avó, mas era incapaz de algo assim. Era uma figura muito doce para os seus, revela” (Stéfano Salles)

Serviço

Espetáculo:Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária”

Sinopse: A frase atribuída à Otto Lara Rezende por Nelson Rodrigues, “O mineiro só é solidário no câncer”, sugere que a solidariedade, em situações de desgraça, é a única exceção ao mau-caratismo humano. A frase está presente na peça como um fantasma, uma tentação que assombra o contínuo Edgard, que não sabe se aceita a proposta de casamento por dinheiro com Maria Cecília, filha do patrão milionário, ou se casa com Ritinha, o amor da sua vida. No final do terceiro ato, Edgard descobre que a bonitinha Maria Cecília, seria uma mulher ordinária, já que teria sido voluntariamente violada por cinco homens negros para satisfazer uma fantasia sexual.

Direção: Ana Zettel

Elenco: Alan Camara, Alfredo Garcês, Anna Kessous, Cassiano Barreto, Jamile Kras, Mariana Mendonça, Pedro Pauleey, Rodrigo Candelot, Vanja Freitas, Yara Brazão. Participação especial de Sacha Rodrigues

Teatro ABI: Rua Araújo Pôrto Alegre, 71 – Centro do Rio
Tel: (21) 2282-1292
Lotação: 500 lugares
Ingressos: R$ 30,00 (inteira); R$ 15,00 (meia-entrada)
Classificação: 14 anos