Ave Cultura, salve Dante


29/01/2023


Por Maria Luiza Busse, diretora de Cultura da ABI

A volta institucional do Ministério da Cultura foi uma das ótimas notícias desse difícil janeiro que chegou ao fim. No dia 24, a Ministra Margareth Menezes reuniu os servidores e fez o anuncio cantando “Aquarela Brasileira”, samba composto por Silas de Oliveira para o enredo de 1964 da Império Serrano, escola do bairro carioca de Madureira.

A letra é um passeio pelas regiões e estados desta “maravilha de cenário” que é o Brasil, na qual em licença cívico-poética Margareth tratou de acrescentar os que não estavam citados. Ficou beleza. Maravilha, beleza, lindo, adjetivos que expressam o retorno da presença do Estado no fomento, apoio e desenvolvimento dos mais diversos matizes das artes e das culturas que formam a paleta de cores do país.

O ataque sofrido pela Cultura e pelas culturas foi de artilharia pesada. O nazifascismo não perdoa, mata. Assim foi, é e sempre será pela história afora. A frase atribuída a Joseph Goebbels, sim, atribuída porque a original “Quando ouço a palavra cultura, engatilho o meu revólver” está em  Schlageter, nome da peça de Hanns Johst e do personagem principal, uma apologia ao que ficou estabelecido como símbolo de heroísmo nazista. Mais uma Mentira dessa gente que se apropria do que vê e dá o tom conforme suas pretensões. Nessa, que sobrou para Dante. O escritor florentino dos séculos XIII e XIV , conhecido pela obra Divina Comédia, teve seu momento de inferno no início desse janeiro do século XXI com a declaração do Ministro da Cultura da Itália, o extrema-direita Gennaro Sangiuliano: “a visão do humano da pessoa que encontramos em Dante, assim como a construção política, são profundamente de direita”.

A baixeza provocou reações indignadas, em especial a de Massimo Cacciari, filósofo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da Universidade San Raffaele de Milão, e estudioso de Dante Alighieri: “Dante de direita? Ridículo”. “Dante era um herético que escrevia para que todos entendessem”. O jornal de centro-esquerda italiano La República, diário que tem a segunda maior tiragem nacional, ouviu Cacciari. A entrevista concedida à jornalista Raffaella De Santis, e publicada na edição de 14 de janeiro último, segue aqui reproduzida em português.

“O pensador do pensamento de direita na Itália foi Dante Alighieri”. Não passou despercebida a declaração bombástica do Ministro da Cultura Gennaro Sangiuliano no evento realizado ontem em Milão pelo Fratelli d’Italia em vista das próximas eleições regionais. (…).

O primeiro a ficar aborrecido com tais afirmações foi Massimo Cacciari, que riu, inicialmente, para depois se irritar e ficar indignado.

RS: Por que rir?

MC: O que devo fazer?  Só se pode rir diante desse gênero de declaração que, entre outras, recorre a categorias do Novecentos, como direita e esquerda, o que não me parece adequado.

RS: Então, passemos para uma reflexão mais séria, para historicizar, se possível, esse tipo de apropriação cultural

MC: Essa veleidade de se apropriar de alguns “fundadores da pátria” é um vício da direita histórica. Pensemos no fascismo que cada vez que celebrava aniversário transformava os considerados pais da pátria em uma espécie de “precursores”.

RS: Aconteceu só na Italia?

MC: São apropriações ocorridas na Italia fascista e na Alemanha nazista, características de todas as direitas históricas européias. Esperava que tivesse saído de moda. Acreditava que as grandes celebrações de sentido nacionalista em Goethe,Wagner, Nietzsche, ou pela poesia medieval alemã ou por Walther von der Vogelweide fossem uma recordação do passado. Eram maneiras de celebrar os próprios santos, os próprios heróis, os próprios poetas, os próprios artistas monumentalizando suas figuras no sentido nacionalista e contrapondo a outras culturas.

RS: De que modo a cultura pode ser um meio para construir uma narrativa patriótica?

MC: Como já disse é pura retorica nacionalista que não considera a realidade: o que de verdade conta na cultura europeia é que suas grandes expressões artísticas, literatura, e também filosóficas, formam uma família. Não por acaso as direitas trataram de arruinar esse entendimento, essa afinidade eletiva. Esperava que não acontecesse mais. Infelizmente, o pior é que elas nunca morrem.

RS: Vamos ao mérito: por que o ministro Sangiuliano escolheu citar Dante?

MC: Como se explica? Dante é um revolucionário, um herético, um homem contra todos. Dante está só nos confrontos com qualquer frente política consolidada no seu tempo, a começar pela teologia politica oficial. Tudo isso pode vir de alguém de direita? Pode ser de direita o fato de um intelectual no início do século XIV escrever um livro como ‘Convivio’, em dialeto florentino para que a quintessência de uma filosofia pudesse ser compreendida até por quem não sabe o latim? Se trata de uma operação contrária a cada espírito conservador. E tomemos o De vulgari eloquentia , considerado o primeiro tratado de linguística: um texto revolucionário dedicado a como se constroem as línguas pode ser lido na chave conservadora? Fala sério… .

RS: Ainda assim Dante era vaidoso e chegado a leituras confortáveis.

MC: Mas isso é outra coisa. Não se pode fazer de um inovador um conservador. Todos os grandes dantistas não cansam de explicar que Dante não é catalogável em nenhuma das grandes escolas que formaram a cultura escolástica. Dante faz uma operação extraordinária a fim de afinar as várias tradições sobre a base de uma perspectiva toda sua. Pode ser considerada de direita a incrível operação que faz no Paraiso quando bota junto Tomás de Aquino e São Boaventura com dois opositores mais renhidos, Gioachino da Fiori e Sigieri di Brabante? Se tudo isso é ser de direita, então eu sou de direita.

RS : Vamos considerar a ideia de império em Dante. Poderia servir ao objetivo?

MC: O império em Dante não tem nada de nacionalismo ou autoritário. O império de Dante não é uma nova forma de ditadura e de autoridade supranacional. É, ao contrário, o império que se forma do acordo entre as nações. A ideia é totalmente original e contra tudo, da Igreja à nova filosofia política. Conforme já escrevi, a grandiosidade do ensaio Monarchia, que não por acaso está no índice, é a seguinte: pode parecer uma operação retrograda, mas não é. A Roma que Dante olha é a pátria do Direito sobre o qual se funda a civilização jurídica europeia.

RS: Então, afinal de contas, quem era Dante?

MC: Dante não é alguém classificável nem mesmo dentro de sua própria história É um absoluto solitário. É um herético no sentido literal do termo que se refere ao grego Aires: é aquele que se levanta contra cada já dito, já feito. Como se pode dizer que é de direita?

RS: Não é a primeira vez que Sagiuliano cita pilares da nossa cultura literária e filosófica como baluartes de uma identidade nacional. Já havia feito com Leopardi.

MC: O pessimismo leopardiano é totalmente apolítico. Sua radicalidade deriva de certas correntes do Iluminismo. Para Leopardi, justamente porque a natureza nos condena à infelicidade, precisamos ser solidários uns com os outros. Leopardi é um representante do grande pessimismo europeu.

RS: Portanto, sua “italianidade” é outro erro?

MC: Tirem as mãos desses autores que não têm nada a ver com sua política. Parem de falar de coisas que não conhecem e sobretudo desse grande solitário. Vou fazer uma lei que os proíba da falar de Dante e de Leopardi.

RS: Sangiuliano nega, e parece ser uma tentativa de minar a hegemonia cultural da esquerda

MC: Mas qual hegemonia? Há grandes personagens que pertenciam à direita: tem o maior filosofo italiano do Novecentos, Giovanni Gentile, e no mundo católico, um personagem como Augusto Del Noce. Também tem Gianfranco Miglio, um grande politólogo. Por que ao invés de dizer essas besteiras, não cita as belíssimas páginas de Gentile sobre Dante?

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Nos dois anos de governo do golpista Michel Temer, e durante os quatro de regime de exceção de finalidade nazifascista, a cultura viveu o risco da Aquarela do Brasil, de Silas de Oliveira, ser apropriada pelo coro da dissonância cognitiva que vê o mundo a partir do que lhe parece e convém. A eleição de 2022 livrou o país desse mal institucional, mas segue na luta para desenraizar o nazifascismo implantado. O retorno do Ministério da Cultura desempenha papel fundamental no escopo deste esforço vocalizado dentre a sociedade civil como movimento SEM ANISTIA. Ave Cultura, Salve Dante.

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