Ato pelo centenário de João Felício dos Santos


30/03/2011


Para o pesquisador Ricardo Cravo Albim, a trajetória do João Felício dos Santos como escritor é muito mais fecunda do que se pode imaginar. Por isso, ele achou justa a homenagem post mortem prestada ao autor pelo seu centenário — ele teria completado cem anos em 14 de março —, realizada na sede da ABI, na noite desta terça-feira, 29 de março.
 
 
Ao ato em homenagem a João Felício dos Santos compareceram parentes, amigos, escritores, jornalistas e personalidades do mundo artístico, como Elke Maravilha:
— O João Felício é uma figura inesquecível. Tenho 66 anos de idade e posso afirmar que nesse período conheci pessoas de todos os tipos, mas com a sua energia ele foi o único, declarou a atriz que conheceu João Felício durante as filmagens do filme “Xica da Silva”, de Cacá Diegues, baseado no livro do escritor.
 
 
Elke Maravilha afirmou que João Felício dos Santos é um autor que deve ser lembrado com muita alegria:
— Tenho dele uma lembrança fantástica, que vai ficar na minha vida para sempre. Era uma pessoa com a qual eu tive o prazer de fazer muitas artimanhas. Ele nos deu sabedoria, alegria, alimentou nossos espíritos sem a pretensão de curar ninguém, disse a atriz.
 
 
 
Um dos destaques da programação foi a apresentação de uma exposição sobre as obras de João Felício, organizada por sua filha Cristina, juntamente com um estande com alguns dos seus livros mais populares, editados pela editora José Olympio, entre os quais “Ganga-Zumba”, “Xica da Silva”, Carlota Joaquina, a rainha devassa”, “Anita Garibaldi” e Major Calabar”.
 
 
Antes de apreciar a exposição, os convidados reuniram-se no Auditório Oscar Guanabarino, para o lançamento da página de João Felício na internet, que pode ser acessada pelo endereço joaofeliciodossantos.com.br.
 
 
Em seguida, foi realizada a palestra sobre a trajetória de João Felício, com a participação especial do pesquisador Ricardo Cravo Albim; do Vice-presidente do Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro, Dartagnan de Holanda; da atriz Elke Maravilha; e do anfitrião e Presidente da ABI, Maurício Azêdo.
 
 
Honra
 
 
Coube ao Presidente da ABI, Maurício Azêdo, fazer a abertura do evento. Segundo ele, a entidade se sentia muito honrada em ter sido escolhida para sediar o ato de celebração do centenário de João Felício dos Santos:
 — A ABI se sente muito honrada em poder sediar esta manifestação de apreço e de saudade por João Felício dos Santos, que foi além do grande escritor, poeta e roteirista cinematográfico, membro do Conselho Deliberativo, em um momento muito difícil da nossa existência nacional em que a ABI constituía um dos alvos da repressão política, afirmou Maurício.
 
 
Maurício Azêdo lembrou que, nesse período, um dos problemas que a ABI enfrentou com a ditadura foi uma bomba de alto poder explosivo colocada no sétimo andar do prédio, onde ficam sediadas a Diretoria e o Conselho da Casa.
 
 
O Presidente da ABI destacou que “foi nessa quadra tormentosa” que João Felício dos Santos, com a sua envergadura de intelectual e de criador, se uniu aos membros do Conselho Deliberativo, que desempenhavam “um papel destemido de enfrentamento da ditadura militar”:
— Então, por esse motivo e por essa saudade que nos move, é com um sentimento de grande apreço a esse companheiro que a ABI sedia este ato, disse Maurício Azêdo, que em seguida convocou a Mesa que coordenou a cerimônia.
 
 
Trajetória
 
 
O primeiro orador da noite foi Ricardo Cravo Albim. Amigo e profundo conhecedor da obra do escritor, ele saudou Cristina Felício dos Santos, filha de João, pela iniciativa:
— A ela se deve este momento, que nos junta para saudar um companheiro cuja trajetória era mais importante do que podemos imaginar, declarou Cravo Alvim. 
 
 
Ricardo Cravo Albim declarou que ficou impressionado com a figura humana revelada em João Felício desde que foi apresentado a ele por Carlinhos Sideral, compositor da escola de samba Imperatriz Leopoldinense, nos anos 60.
 
Ressaltou que essa foi a sua “primeira janela” para o bom entendimento do lado menos reconhecido da diversidade intelectual de João Felício: o de autor de enredo para o carnaval carioca:
— Para a escola de samba Imperatriz Leopoldinense ele fez, em 1985, o enredo “Adolâ, cidade mistério”, com músicas exatamente do Sideral. E para o Clube Carnavalesco Canários das Laranjeiras foi autor de quatro enredos: “Ganga Zumba” (1970), “O negro na História do Brasil” (1973), “A virgem Intocável ( A lenda de Acaiaca)” (1975)  e “A cidade verde” (1978), contou Cravo Albim.
 
Segundo o pesquisador, João Felício foi quem inspirou Carlinhos Sideral no samba “Oropa, França e Bahia”, para o desenvolvimento de um enredo sobre a Semana de Arte Moderna de 1922.
 
Ricardo Cravo Albim citou outras aventuras do escritor pela MPB, como o choro “Pranto”, gravado por Rosita Gonzáles e o samba exaltação “O índio”, em parceria com Gadé, da dupla Gadé e Valfrido Silva, autores do clássico “Estão batendo”.
 
Em um trecho da sua palestra, Ricardo Cravo Albim disse que João Felício foi uma das melhores e abertas mentes humanas que ele conheceu, comparando-o inclusive ao poeta Vinicius de Morais:
— João Felício era um artista singular, porque ele, como Vinicius, levava uma vida de poeta, nunca de intelectual de redoma como seu amigo admirador Carlos Drummond de Andrade. Aliás, como Vinicius, dele se pode dizer que era “o branco mais preto do Brasil, saravá”. Pela comovedora solidariedade à cultura negra brasileira.
 
 
Visionário
 
 
João Felício dos Santos era um visionário da essência da face criativa que emana do segmento popular, e acabou colaborando com Ricardo Cravo Albim na sua compreensão sobre a riqueza da nossa diversidade cultural:
— Ele muito me ajudou na compreensão exata do processo cultural brasileiro, quando eu estruturava tanto a dinâmica do Museu da Imagem e do Som (MIS), quanto o processo dos depoimentos para a posteridade do museu, base do seu reconhecimento público a partir de 1966, afirmou.
 
O palestrante fez questão de mencionar o entusiasmo de João Felício em relação à sua opção pelos pioneiros do samba:
— “Ricardo” — ele me dizia em visitas que me fazia depois de cada depoimento famoso — “você está fazendo história, a certa e a generosa, em começar o seu museu colocando no pódio da posteridade esses negros maravilhosos que fizeram o melhor nessa terra, de tanta gente pretensiosa, sem sangue, sem graça, uns quase paspalhos”.
 
 
Um dos aspectos realçados por todos os oradores da noite foi o dinamismo e o comprometimento que João Felício dos Santos empregava para construir os seus romances históricos.  Nesse contexto, foram lembradas as aventuras do autor para escrever “A guerrilheira — o romance da vida de Anita Garibaldi”, lançado em 1979.
 
 
Ricardo Cravo Albim reproduziu um depoimento de João Felício sobre o livro, no qual ele critica a falta de precisão dos historiadores sobre dados da personagem, e reclama que “escrever romance histórico no Brasil é uma dificuldade”.
 
 
Veja o que disse João Felício sobre os textos historiográficos: “Tem historiadores que afirmam que ela nasceu em São Paulo, outros que em Santa Catarina. Então eu creio a minha própria verdade. Mas a verdade não tem muita força. Nunca dei muita atenção a ela. Procuro ser verdadeiro nos nomes das pessoas, nas datas, nos números. Mas o resto é fantasia. Afinal, quem sabe o que pensaram Getúlio ou Tiradentes na hora suprema da morte?”
 
 
Pelas palavras de Ricardo Cravo Albim, o público ficou sabendo que João Felício dos Santos dizia que falta criatividade aos textos historiográficos. Ao amigo, ele confidenciou que achava o historiador “um romancista fracassado”, que se prende à história factual, concreta, sem graça alguma, mas não tem a força da imaginação. “E aí é o meu terreno, a minha praia, o meu gozo e prazer”, afirma o escritor.
 
 
Ao final a sua exposição, Ricardo Cravo Albim disse que não poderia deixar de reiterar que a obra de João Felício dos Santos ainda não foi devidamente avaliada:
— Em um País que confere pouco apreço às memórias, o constrangimento de termos por levantar uma obra de tamanho porte quanto a do nosso homenageado fica claro, necessário e urgente.
 
 
Riqueza poética
 
 
O Vice-presidente do Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro, Dartagnan de Holanda não quis falar de improviso — “a memória e a emoção me trairiam com certeza” — e leu um texto que preparou especialmente para as homenagens a João Felício dos Santos.
 
Para Dartagnan o escritor João Felício dos Santos era um incansável pesquisador da História e dos costumes brasileiros, que deixou nos anais da literatura nacional “um rio de conhecimento”, onde navegam nomes como Ganga Zumba, Carlota Joaquina, Calabar, Antônio Conselheiro, Xica da Silva, Aleijadinho, João Abade e muitos outros encontrados em sua narrativa:
— Durante toda a sua vida embrenhando-se pelo Brasil, como topógrafo que era de profissão, foi garimpar personagens que hoje estão marcados à tinta e dedicação nas páginas de seus livros.
 
 
Ele se referiu também aos romances escritos pelo autor, muitos deles baseados em fatos de nossa História oficial, e as obras dedicadas o público infantil, além dos “belíssimos sonetos e trovas”:
— Memorável no seu estilo sua maneira gostosa de escrever se aproximava do povo com um belo gingado, uma fala brejeira, um cheiro envolvente dos perfumes do mato, um sabor diferente das frutas dos trópicos. Jogava com as palavras como um malabarista faz com os seus objetos, numa precisão única sem nunca deixar cair uma peça, afirmou Dartagnan provocando aplausos da platéia.
 
 
Dartagnan de Holanda contou que conhecia João Felício desde a adolescência. Já adultos os dois vieram a se reencontrar na Associação do antigo Banco do Estado do Rio de Janeiro (BEG).
 
 
Foi nesse período que Dartagnan, que também já se lançava como escritor, passou a ler e apreciar os contos de João Felício:
— O João Felício para mim era um dos mais ricos escritores brasileiros, por sua linguagem, pelo seu estilo e por sua técnica em amalgamar tipos que existiram em verdade, e outros por ele criados fazendo passearem no tempo e no espaço de modo cumprirem seu destino, disse o Vice-presidente do Sindicato dos Escritores do Rio.
 
 
Ele falou também sobre o hábito de escrever que João Felício dos Santos tanto apreciava, e do carinho com a sua esposa Carmem:
— Ele sempre dedicava o primeiro exemplar de seu livro à Dona Carmem. Outro detalhe é que suas obras estão aí e figuram como estrelas de primeira grandeza no universo literário brasileiro, afirmou Dartagnan de Holanda.
 
 
Brinde
 
 
No site de João Felício, o internauta vai encontrar uma série de poesias inéditas do autor, essas poesias que ele escreveu entre as décadas de 1940 e 1950, antes de ele criar os seus romances históricos.
— Como eu gostava muito dessas poesias eu acabei fazendo este resgate a as coloquei no site uma seleção de dez poemas para que eles se tornem de conhecimento público, explicou Cristina Felício dos Santos.
 
 
Cristina Felício contou que para enriquecer o projeto foram selecionados textos de cada romance histórico, para que o público tome conhecimento da diversidade da linguagem de João Felício:
— Pretendemos mostrar como que em cada livro, praticamente desde o primeiro capítulo ele já penetra no universo da maneira de falar do povo daquela região que ele está retratando, afirmou a organizadora do trabalho.
 
 
Além de todas as histórias interessantes contadas sobre a grandiosa obra de João Felício dos Santos, o público que compareceu à ABI foi agraciado com um CD comemorativo que dá uma idéia da viagem que ele faz pelo Brasil, através da linguagem do povo que ele está representando.
 
Entusiasmada, Cristina Felício dos Santos falou sobre a importância do ato:
— Para mim foi muito emocionante fazer esse resgate e poder compartilhar isso com vocês, disse a filha do homenageado.
 
 
Perfil
 
 
João Felício dos Santos nasceu no município de Mendes, no Rio de Janeiro, em 14 de março de 1911. Era membro de uma família de escritores. Iniciou a sua carreira literária pelo caminho da poesia, com o livro “Palmeira real”, lançado em 1934.
 
 
É autor de uma obra vasta, na qual se destacam romances, contos, poesias, literatura infantil, livros técnicos, argumentos e roteiros cinematográficos e o desenvolvimento de enredos carnavalescos.
 
 
Exerceu o jornalismo por mais de 40 anos e foi membro do Conselho Deliberativo da ABI. Trabalhou no Ministério dos Transportes, onde ocupou inclusive o cargo de Diretor de comunicação.
 
 
É autor de 14 romances, sendo que o primeiro foi “O pântano também reflete as estrelas”, sobre a política do café no início do século XIX, publicado em 1949.  Escreveu sobre a saga de Canudos e a história do Major Calabar, que retrata o período da invasão holandesa no Brasil. Tem ainda dois textos inéditos: “A força vermelha” e “Rotas do mar”.
 
 
O sua obra mais conhecida é “Ganga Zumba” (1962), que lhe rendeu um prêmio pela Academia Brasileira de Letras (ABL). O livro foi adaptado para o cinema sob a direção de Cacá Diegues. É autor dos argumentos dos filmes “Cristo de lama”, de Wilson Silva, e “Parceiros na noite”, de José Medeiros.