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Assédio judicial, uma ameaça crescente ao jornalismo no Brasil


22/03/2025


Por Mário Osava (*), em Inter Press Service

O jornalista Marcelo Auler foi condenado a pagar indenização por supostos danos morais a um juiz que se sentiu insultado à sua honra por uma reportagem sobre sua decisão de devolver ao Haiti duas crianças que buscaram refúgio com a família no Brasil após o terremoto que matou sua mãe biológica em seu país. Foto: Arquivo Pessoal de  Marcelo Auler

Marcelo Auler ficou com apenas 160 reais (US$ 27) no bolso. Em 14 de janeiro de 2025, um juiz bloqueou os quase 21.000 reais (US$ 3.500) que ele tinha em suas três contas bancárias, uma das quais é usada para receber sua pensão como jornalista assalariado.

Os outros dois são usados ​​para administrar a remuneração de seu trabalho atual como jornalista freelancer e contribuições para seu próprio blog. Sem dinheiro para pagar seus cartões de crédito, que venceriam em poucos dias, ele escapou da fome graças a empréstimos e à ajuda de amigos.

Felizmente, eles congelaram apenas o que ele tinha nos bancos, não sua renda subsequente. Ele conseguiu reconstruir sua vida financeira a partir de fevereiro, mas foi condenado a pagar 76.119 reais (US$ 13.470) a um juiz do Paraná, que alegou ter se sentido ofendido por uma reportagem de Auler, publicada em julho de 2018.

Essa é uma das inúmeras ações judiciais que estão turvando a atividade jornalística no Brasil, já em crise pela perda de audiência e fontes de financiamento.

O escritório de advocacia Flora, Matheus & Mangabeira, sediado no Rio de Janeiro, atua em quase 300 processos contra jornalistas e veículos de comunicação.

“Trabalhamos com alguns desses casos em conjunto com a rede de proteção de jornalistas e comunicadores, organizada pelo Instituto Wladimir Herzog , Artigo 19 , Repórteres Sem Fronteiras e Intervozes ”, disse à IPS o advogado André Matheus, um dos sócios do escritório.

As organizações não governamentais que ele citou defendem os direitos humanos, a liberdade de expressão e a democratização da comunicação. Herzog foi um jornalista assassinado sob tortura em 1975 pela ditadura militar brasileira, entre 1964 e 1985.

Censurar por bolso

Pedir indenização por danos morais virou uma estratégia de censura para silenciar jornalistas e veículos de comunicação, segundo Matheus. A Constituição Brasileira de 1988, ao detalhar direitos pessoais e civis, oferece ferramentas para responder, ele observou.

“Tivemos êxito em 95% das nossas ações constitucionais no Supremo Tribunal Federal (STF)”, disse o advogado, que também é doutorando sobre o mesmo tema.

As decisões do Supremo Tribunal Federal dos últimos anos, que garantem a liberdade de expressão e de imprensa e condenam esquemas que as reprimem, como o assédio judicial, favorecem a defesa dos jornalistas, mas não evitam a perda de tempo, a autocensura, os custos financeiros e, às vezes, as dificuldades, como aconteceu com Auler. E também o fim ou o corte da carreira.

Elvira Lobato, conhecida jornalista do jornal Folha de São Paulo, disse que se aposentou mais cedo após o estresse causado pelo primeiro grande caso de assédio em massa.

Uma de suas reportagens sobre os muitos negócios da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), publicada em 15 de dezembro de 2007, provocou uma reação irada do império neopentecostal, resultando em 111 processos judiciais espalhados por muitas cidades do país nos meses seguintes.

Ela e seu jornal venceram todas as batalhas judiciais, mas a jornalista reconheceu em entrevista à TV Cultura de São Paulo, em 17 de dezembro de 2020, que a Igreja Universal atingiu seu objetivo de silenciar um veículo de comunicação que sistematicamente denunciava sua exploração comercial da religião.

Ela própria parou de escrever sobre a IURD, tendo perdido sua imparcialidade após ser forçada ao status de contraparte judicial.

Piada fatal

Outro caso de grande repercussão, movido pela mesma igreja, teve como vítima o jornalista e escritor João Paulo Cuenca, por ter publicado na rede social Twitter, hoje X, em 16 de junho de 2020, a frase “O Brasil só será livre quando o último Bolsonaro for enforcado nas entranhas do último pastor da Igreja Universal”.

Era uma paráfrase do ditado do padre francês Jean Meslier, que viveu no século XVIII e que falava em enforcar o último rei nas entranhas do último padre. O líder de extrema direita Jair Bolsonaro foi presidente do Brasil de 2019 a 2022.

A piada custou a Cuenca o inferno de 144 processos em tribunais de 18 dos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal de Brasília, com pedidos de indenização totalizando 3,3 milhões de reais (US$ 645.000), a perda de seu escritório de correspondente na agência de rádio e televisão alemã Deutsch Welle e inúmeras ameaças de morte.

Cuenca rejeitou com sucesso os processos com a ajuda da Media Defence , uma organização internacional de apoio jurídico sediada em Londres para jornalistas e veículos de mídia independentes em todo o mundo. Seu último relatório anual, de 2023, relata 595 casos assistidos em mais de 70 países.

Além disso, seu julgamento se voltou contra seus acusadores. Em 3 de fevereiro de 2025, o Ministério Público Federal (Ministério Público Federal) iniciou uma ação judicial contra a Igreja Universal, pedindo indenização de cinco milhões de reais (US$ 880.000) por danos morais coletivos por instigar assédio judicial a Cuenca.

Se esse valor for concedido, ele será usado para projetos de combate à violência contra jornalistas.

Protetor supremo

Em 22 de maio de 2024, o Supremo Tribunal Federal condenou expressamente como assédio judicial a prática de multiplicação de ações simultâneas em juízos distantes para dificultar a defesa da expressão e da atividade jornalística.

Os abusos de ações judiciais por supostos danos morais aumentaram com a ascensão política da extrema direita no país, que está envolvida em guerra aberta contra o jornalismo independente.

O empresário Luciano Hang, dono de uma rede de lojas comerciais e próximo de Bolsonaro, é o defensor individual dessas tentativas de intimidação de jornalistas.

Entre 2008 e março de 2024, ele iniciou 53 ações classificadas como abusivas, segundo o relatório da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), que lançou o Monitor de Assédio Judicial contra Jornalistas , projeto que coleta sistematicamente dados sobre tais abusos.

Para isso, conta com o apoio da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).

O governador do Mato Grosso, Mauro Mendes, do partido de direita União Brasil, também acumula processos contra jornalistas que criticam sua administração ou os negócios de seus familiares e são suspeitos de favorecimento político, observou o advogado Matheus.

A deputada federal Julia Zanatta, do Partido Liberal, que reúne a extrema direita, incluindo Bolsonaro, é a campeã entre os parlamentares, com 12 processos contra jornalistas, segundo a reportagem da Abraji.

“O uso abusivo da Justiça, alegando crimes contra a honra, é o novo padrão de assédio para silenciar a imprensa, com base em critérios subjetivos, não em erros de reportagem ou falta de checagem de fatos. Isso tem efeitos devastadores”, disse Samira de Castro, presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj).

O governador Mendes, que levou 16 jornalistas a julgamento, usa a polícia para pressioná-los e denuncia jornalistas que compartilham notícias negativas como uma “organização criminosa”.

A Fenaj pede sua inabilitação política perante o Supremo Tribunal Federal por esses abusos, disse Castro à IPS por telefone de Fortaleza, uma das capitais do Nordeste do Brasil.

Juízes, também carrascos

Além da extrema direita, juízes reagindo às críticas ao seu poder também se destacam nas ações contra jornalistas.

Cinco jornalistas do jornal Gazeta do Povo tiveram que se defender em 45 ações de danos morais espalhadas pelo estado do Paraná em 2016, por publicarem uma reportagem sobre os salários dos magistrados locais, que ultrapassavam o teto constitucional e ainda eram majorados por benefícios questionáveis.

Foi uma juíza de um tribunal de menores do Paraná que processou Auler por uma reportagem de 2018 na qual a acusava de tentar devolver duas crianças haitianas refugiadas ao seu país de origem, contra a vontade delas e sem cumprir as regras estabelecidas.

A juíza alegou em sua denúncia que a reportagem era inverídica e a expôs a riscos ao identificá-la pelo nome completo, exigindo indenização por danos morais e a retirada da reportagem do meio digital que a publicou. A decisão de outros dois juízes foi a seu favor.

“Eu não inventei a história”, rebateu o jornalista à IPS, acrescentando que baseou sua história em fatos comprovados e depoimentos dos envolvidos no caso, mas acredita que é mais provável que tenha que pagar uma indenização, apesar de ter recorrido ao Supremo Tribunal.

Integrante do mesmo STF, Gilmar Mendes, decano dos 11 ministros que o compõem, é autor de diversos processos contra jornalistas.

Rubens Valente, repórter premiado de grandes jornais e atualmente trabalhando na agência de jornalismo investigativo Pública, teve que pagar a Mendes 319.000 reais (US$ 64.000) em 2022. Mendes considerou sua representação no livro “Operação Banqueiro”, escrito pelo jornalista e que aborda um escândalo financeiro, como difamatória.

Valente, absolvido em primeira instância e condenado em dois tribunais superiores, recorreu a uma campanha de doações da qual participaram mais de 2.400 pessoas para arrecadar o valor devido.

O caso foi um trauma para o jornalismo brasileiro.

O próprio Mendes processou Octávio Costa, hoje presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), e Tábata Viapiana por indenizações que Costa estima que podem chegar a mais de R$ 200 mil, com juros e correção monetária.

A decisão ocorre após decisão judicial sobre matéria de capa da revista Isto É, de 15 de dezembro de 2017, sobre a suposta venda irregular de uma universidade de propriedade de Mendes ao governo do estado de Mato Grosso.

Costa, então chefe da sucursal da revista em Brasília, e o repórter venceram nas duas primeiras instâncias, que rejeitaram as acusações. O tribunal seguinte, o Superior Tribunal de Justiça, concordou com essas decisões e até rejeitou o recurso de Mendes em 2019.

Este tribunal é nacional e representa a penúltima instância da Justiça brasileira, perdendo apenas para o Supremo Tribunal Federal, que no país é a instância máxima em todos os casos e também funciona como uma corte constitucional.

Mas o processo contra Costa e Viapiana voltou a ganhar vida quando outro juiz do Superior Tribunal de Justiça o retomou devido a “peculiaridades do processo” e acolheu o recurso de Mendes para um novo julgamento.

“É uma cambalhota, não é normal no STJ”, disse Costa à IPS, temendo uma prolongação do caso, julgado há mais de cinco anos.

(*) conselheiro da ABI