03/08/2020
AS NOITES BOÊMIAS DA FIORENTINA PODEM ACABAR PELA PANDEMIA
Por Vera Perfeito, diretora de Cultura e Lazer da ABI
Uma das mais belas histórias do livro As noites da Fiorentina é da jornalista carioca Graça Lago ao dançar a valsa de seus 15 anos, em 1966, no salão do local que está fechado e com destino indefinido devido à pandemia. Em seus 53 anos, a Fiora – nome carinhoso como é conhecido o restaurante inaugurado em 1957 por Sylvio Hoffman – foi frequentada por artistas, jornalistas, publicitários, escritores e era o local onde se sabia das notícias “fresquinhas” do dia no fim das noites boêmias. Ali, as festas eram constantes: aniversários, jantares de negócios, final de noite de atores e comemorações de amigos como o tradicional almoço anual dos ex -JB (Jornal do Brasil), iniciado neste século e que aconteceu ali até 2018, com a festa dos 85 anos do jornalista, editor e escritor e “mestre”, como era chamado Alberto Dines.
O restaurante esteve fechado, entre 1992 e 2002, por problemas financeiros enquanto suas tradicionais colunas perdiam as famosas assinaturas dos VIPS. Mas o enteado de Sylvio Hoffman, seu primeiro proprietário, o empresário Omar Perez, o Catito, reabriu o local depois de restaurar as colunas, incluir nomes famosos nos pratos do cardápio e as noites de boêmia voltaram a acontecer sob a batuta de seu relações públicas, o produtor, diretor e ator teatral Djalma Limongi. Ele recebia a turma do cinema, teatro e mídia com um papo ótimo e carimbo de 20% de desconto na conta.
O LIVRO E A VALSA
A jornalista Graça Lago foi uma das primeiras a enviar um texto para o livro As noites da Fiorentina – do jornalista Fritz Utzeri e do qual também participei, realizando entrevistas – lançado em 2004. Filha do querido Mário Lago, que nos deu a música Amélia, ela dizia no texto que “à Fiorentina, generosamente, oferecemos três gerações de frequentadores, a começar por nossos pais, um tio e passando por nós cinco (ela e os irmãos) e por alguns de nossos filhos”. Mas foi a noite de seu aniversário de 15 anos, em 25 de maio de 1966, que ela não esquece. O pai a levou para a Fiorentina já que não havia dinheiro para grandes festas, sonho das mocinhas da época. Em meio aos parabéns e surgimento de um bolo, alguém – Graça aposta em Edu da Gaita – começou um para-ra-ra-ra-rá/ pará-pará e ao som de Danúbio Azul, entoada por um coro de artistas assíduos do local, a aniversariante e seu pai rodopiaram pelo salão, dançando a valsa, à meia-noite. “Foi lindo!”, emocionou-se a debutante.
O cartunista Jaguar conta no livro que, na década de 70, estava na Fiora, às quatro da matina, “tomando a penúltima, quando um famoso jornalista me disse que tinha discutido com uma famosa cantora que o acompanhava e ia sair à francesa”. Segundo o jornalista, a moça estava de porre (como todos na área). “A moça chorava e dizia que o cara era um cafajeste (verdade, saiu sem pagar a conta). Peguei um táxi e levei-a para a casa dela onde bebemos meia garrafa de uísque e confesso que não tive uma das melhores performances. Já raiava o dia quando e avisei que o táxi estava me esperando. Ela me disse: “Achei o motorista um tesão, manda ele subir e pega outro táxi”. A noite sempre começava ou acabava na Fiorentina.
Muitas outras histórias constam do livro – da Panorama Editora e, infelizmente, esgotado – como Daniel Filho narrando a tristeza de olhar a atriz Rita Hayworth – levada à Fiora pela primeira vez pelo playboy Jorginho Guinle – debaixo de chuva, tentando um táxi em frente ao local. A eterna “Gilda” já não fazia nenhum sucesso por ali depois de três semanas. Edu da Gaita também escorraçou Brigitte Bardot, em sua temporada no Rio, em 1964, depois de aparecer por lá duas vezes, acompanhada do namorado, Bob Zagury. Na terceira, Edu mandou: “O que essa chata vem fazer aqui de novo?”.
E há histórias como a de Amália Rodrigues que parou na entrada do restaurante, envolta em uma estola de pele, ficando a olhar para todos sem entrar. Até que alguém comentou: ‘Em Portugal, quando ela chega todos se levantam’. E foi o que aconteceu na Fiora cujos frequentadores viram a fadista desfilar triunfante, curtindo os aplausos.
O falecido playboy Jorginho Guinle na entrevista para o livro já havia trocado o malte escocês e as flûtes de champanha francesa pelo italiano Campari. Sua fortuna havia evaporado. Ele adorava ver o desfile da turma do Clube dos Cafajestes – o colunista Ibrahim Sued era um deles – desfilando em carrões e mostrando a bunda. E muitas histórias contava nas mesas do restaurante como a da cantora Billie Holliday que brigou em um bar de Nova Iorque – o primeiro onde conviviam negros e brancos – com o dono do local que era chefe do
Partido Comunista Americano. Tudo porque seu cachorro decidiu acompanhar com alguns grunhidos o som do instrumento de um dos maiores saxofonistas da época, Ben Webster, que tocava com Duke Ellington. E as atrizes Kim Novak e Romy Schnaider que ele trouxe ao Rio – não resistiram a mergulhar quando saíam da Fiora com o nascer do sol.
Um showman como Mièle não poderia deixar de estar em um livro sobre a Fiorentina e contar como ajudou o amigo e pianista Luiz Carlos Vinhas depois de um show de sucesso. “Três coisas não combinam com manchas de batom: summer branco, camisa a rigor e esposa da gente”. Deu a sugestão ao amigo pianista para comer na Fiora um espaguete ao sugo. “Comemos a massa e o sugo ele derramou tranquilamente sobre a camisa, tronco e membros, de acordo com os meus sábios conselhos. Esperou esfriar, é claro”.
Para Ziraldo, as noites da Fiorentina foram muito importantes mesmo nas décadas de 1960 e 1970. Ele a sua falecida mulher, Vilma, viviam lá e os garçons esquentavam a mamadeira da filha Daniela. “E foi aí que morreu o Ziraldo Pinto como eu assinava meus desenhos e nasceu o Ziraldo, por ordem do editor de O Cruzeiro onde eu trabalhava. Quer dizer, nasci filho do casamento da Fiorentina com O Cruzeiro”. E aparecer bem no local era tão importante que o ator/diretor Anselmo Duarte – que recebeu a Palma de Ouro, em Cannes, pelo melhor filme “O pagador de promessas” que dirigiu, em 1962 – preferiu comemorar outro prêmio, o da crítica do Festival de Edimburgo, em uma mesa discreta do restaurante com garçons e o público frequentador quando sentiu a inveja de um grupo de cineastas que o ignorou. “Ganhar a Palma de Ouro é fácil, difícil é agradar na Fiorentina”.
E era uma delícia passar as noites ouvindo os casos relatados pelo relações públicas da Fiora, Djalma Limongi. Um deles, foi a noite em que ele e Paulo Pontes saíram de fininho do local e foram ao Le Bateau – um sucesso na época – para uma noitada de “certas coisas”. Quando Bibi Ferreira, então mulher de Paulo, chegou à Fiorentina e não encontrou o marido, fez indagações e acabou descobrindo o paradeiro dos dois fujões. Rumou para a boate e os espertos se esconderam no único local onde a atriz não pensaria em ir: o banheiro feminino
Em outra noite, o grande amigo de Bibi, Oduvaldo Vianna Filho, o Vianninha, premiado dramaturgo e um dos baluarte do grupo“Opinião”, apavorou-se quando viu a amiga entrar na Fiora procurando alguém. Vianinha estava com uma bela e conhecida mulher em uma mesa e disse: ”Ih, ela vai contar para minha mulher que eu estava com você”. E a mulher retrucou: “Você está bêbado? A Bibi é ceguinha e está sem óculos. Portanto, não viu ninguém”. E ao contar o caso, que o próprio Vianinha lhe relatou dias mais tarde, a atriz completou: Na Fiorentina, sempre alguém estava com outro”.
Já Lan, o grande cartunista, fez uma análise de nossa cidade, em 2004, ano do lançamento do livro: “O Rio da época de ouro da Fiorentina não existe mais. Dá saudade. Mas foi a especulação imobiliária que acabou com tudo. Eu já esculhambei muito Sérgio Dourado ( dono da mais importante empresa de construção civil do Rio em décadas passadas) . Ele fazia chantagem com aqueles que não queriam vender seus imóveis nos prédios de quatro andares da Vieira Souto. É certo que o Rio precisava da verticalização, mas a consequência do que está aí foi a invasão dos boias- frias do Nordeste e a proliferação de favelas. Daí, foi um passo para o tráfico de drogas”. E hoje, temos mais as milícias.
Em sua segunda fase boêmia, de 1964 até a década de 1980, durante a ditadura, a Fiorentina era uma espécie de quartel general onde a esquerda se encontrava
para saber das principais notícias porque a censura já metia a tesoura em tudo que saísse do controle dos militares. A intelectualidade resistia ali ao golpe e, nessa época, surgiram Chico, Caetano, Gil, Bethânia, Nara, João Gilberto, a Bossa Nova e o Cinema Novo. Mas também apareceram os “arapongas” na Fiorentina que ficavam nas mesas de ouvidos atentos. Um deles se deu mal em uma noite em que o ator Carlos Melo perguntou a José Vasconcelos se ele tinha “pó” e o humorista respondeu afirmativamente. O policial seguiu os dois até ao banheiro e ficou desbundado quando descobriu que o pó era um Corega para fixar dentaduras. Tempos pueris. E ainda na Fiorentina começaram os namoros de casais famosos como Bibi Ferreira e Paulo Pontes, Jorge Dória e Íris Bruzzi, Daniel Filho e Dorinha Duval. E, segundo o cômico Agildo Ribeiro, “todo mundo comia todo mundo”.
Em As noites da Fiorentina estão textos e entrevistas deliciosas de Tetê Nahaz, Jece Valadão, Mièle, Carlos Manga, Bibi Ferreira, Wilson Vianna (o Capitão Aza), Fabio Sabag, Leina Krespi, Dercy Gonçalves, Jorge Dória, Tonia Carrero, Oswaldo Loureiro, Jorginho Guinle, Agildo Ribeiro, Orlando Miranda, Victor di Mello, Rogéria, Maurício Sherman, Edson Silva, Anselmo Duarte, Ziraldo, Daniel Filho, Hildegard Angel, Jaguar, Sérgio Cabral, Aderbal Freire-Filho, Lan, Íris Brüzzi, Darlene Glória, Carmen Verônica, Juca Chaves, Djalma Limongi e Omar Perez.
FESTAS
Em 2004, um grupo de ex-jornalistas do Jornal do Brasil se uniu sob a batuta de Carlos Lemos – ex-secretário de redação – e conseguiu os e-mails e telefones (ainda não havia whatsapp) de boa parte dos repórteres, redatores, fotógrafos, chefes de reportagem, editores, revisores, copy-desks (ainda existiam!), diagramadores, secretárias, contínuos (como Tantinho da Mangueira), telefonistas, guardadores de carros (como Monarco) que trabalharam na redação. E aconteceu o primeiro de muitos almoços anuais de sábado na Fiorentina. O primeiro encontro começou às 13hs e o último participante deixou o local às 2 da manhã, cambaleando, naturalmente. As lembranças eram muitas e os que se tornaram escritores também vendiam seus livros. Apenas, em 2006, a festa aconteceu no Rio Scenarium e mais de 400 jornalistas se esbaldaram até a madrugada, inclusive correspondentes como Remy Gorga, de Quito, e Sílio Boccanera, de Londres.
Durante esses anos, o jornalista Sérgio Fleury e eu organizamos a festa até que ele partiu e fiz sozinha em 2017 e 2018, passando o cargo, no ano passado, para a jornalista Sandra Chaves que transferiu o almoço para a Taberna da Glória. O motivo foram rusgas com Omar Perez que reeditou o JB um pouco antes das eleições presidenciais que elegeu Bolsonaro, mas logo depois o jornal novamente morreu embora sem pagamentos aos ex-JB que nele trabalharam. Na Taberna da Glória também aconteceu um encontro pré-Natal desses jornalistas, em dezembro de 2019, organizado por Malu Fernandes.
Nos almoços da Fiora comemoramos os 80 e 85 anos dos jornalistas Carlos Lemos, que foi secretário de redação do JB, e do editor Alberto Dines ( que já nos deixaram), os 80 de Luiz Orlando Carneiro, os falecimentos de Sérgio Fleury (com sua foto em máscara), de José Luiz Alcântara e de outros companheiros que se foram precocemente. Ao final, todos se reuniam no calçadão da Fiorentina, na Av. Atlântica, no Leme, para a tradicional foto do encontro. Teve até camiseta com a lauda do JB. As fotos não me deixam mentir.
E jornalistas de O Globo também começaram a se reunir na Fiorentina que, esperamos, possa se recuperar economicamente desses tempos que nos assolam.
Galeria de fotos: