Banner 2
Banner 3
Banner 1

Angélico Sândalo Bernardino, em três tempos


26/04/2025


Por Vicente Alessi, filho (*)

Morava em Ribeirão Preto, a 312 quilômetros de São Paulo, era secundarista, o ano era 1966, o primeiro das grandes passeatas nacionais que repetimos lá, eu ainda não tinha 17 anos. Mamãe estava preocupada comigo, ela sempre uma católica ardorosa de missa aos domingos. Preocupada com minha ausência a missas e a outras liturgias e também sem saber muito bem como lidar com novidades como guerra do Vietnã, movimento estudantil, ditadura, me disse um dia: “Conversei com dom Angélico e ele pediu para você fazer uma visita a ele lá no jornal”.

O jornal era o da Arquidiocese, o Diário de Notícias, que tinha lema em corpo grande logo na capa: “A César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Dom Angélico era o diretor do jornal e cônego da Catedral. Amigo da família desde Piracicaba, logo ele, ali de perto, nascido em Saltinho, que mamãe reencontrou em Ribeirão para onde nos mudamos em 1960, vindos de São Carlos. Tinha nos visitado uma ou duas vezes lá em casa, naquilo que hoje é o campus da Universidade de São Paulo na cidade, e mamãe nutria enorme respeito por ele. Entendi o recado: vá falar com ele!
Desde este longínquo 1966 nos encontramos várias vezes, oficial e extra-oficialmente, em circunstâncias familiares, profissionais ou apenas pessoais, para tomar uns cafés e para jogar conversa fora. Acho que nunca dentro de uma igreja. Cumpri uma ou duas tarefinhas que ele me delegou. Morreu na terça-feira, 15, aos 92 anos, em São Paulo.

Em 1966

Mamãe mandou e procurei dom Angélico no jornal. Ele se lembrava de mim: “Ora, ora! Você veio! Não se recusa pedido de mãe, não é, mesmo?”, começou ele, me oferecendo café e me servindo antes que eu abrisse a boca. Eu não sabia bem o que dizer, disse qualquer coisa, perguntei como funcionava um jornal. Ele respondeu com qualquer bobagem, tipo depois-te-mostro e foi ao ponto: “Vicentinho: sua mãe está preocupada com a sua falta de religiosidade. Logo você, que foi até coroinha em São Carlos. O que está acontecendo?”.

Percebi que estava encrencado. Pouco sabia daquele padre à minha frente, toscamente ouvira falar de Teologia da Libertação, nem de perto me passava pela mente a ideia de que, no Brasil, aquele cara de Saltinho ali na minha frente seria a maior expressão da Teologia da Libertação junto com um certo Leonardo Boff. E que eu o entrevistaria para reportagem para a revista Senhor vinte anos depois.

“Pois é, dom Angélico. Estou descobrindo coisas novas, coisas que a gente não fica falando por aí. Marxismo, leninismo. Comunismo, socialismo. Materialismo histórico e dialético. Capitalismo e ditadura. E estou descobrindo que é difícil ter fé religiosa que nos exija crença. Descobri que não acredito em nada de forma tão incondicional.”

Mais: “É confuso acreditar em algo que seja onipotente, onipresente e onisciente tudo ao mesmo tempo. Parece que fé é isto e isto não tenho, dom Angélico. Só tenho muitas dúvidas”.

Ele bateu com o lápis na mesa como quem descobre que não há o que fazer: “Vicentinho: você mora lá na Faculdade, tem acesso aos professores, aos laboratórios, ao pessoal que faz pesquisa. Você não quer fazer umas entrevistas para publicarmos aqui no jornal? Que tal uma por semana, uma série?”.

Foi o que fiz, publicado pela primeira vez, agradecido e espantado por ele não ter me destinado alguma quantidade do fogo do inferno. Nos despedimos. E ele fala baixo, só para os meus ouvidos: “Vicentinho: eu compreendo você quando diz que é difícil crer. Também tenho dúvidas”.
E me chamou de Irmão. Como o faria todas as vezes em que nos encontramos.

Em 1971

Ribeirão abrigava, em 1969, vários grupos clandestinos de luta contra a ditadura, tanto de partidos, os Comunista, quando de organizações revolucionárias não partidárias, algumas já alinhadas às diretrizes gerais da OLAS, Organização Latino-americana de Solidariedade, criada por Salvador Allende em Cuba logo após a primeira conferência da Tricontinental. Era a nossa Cidade Vermelha.

O grupo ao qual estava ligado, as FALN, mantinha perfil baixo até outubro, quando a direção decidiu aceitar o que considerou clamor das bases por ação e para fugir da qualificação de temerosa e sem rumo. O resultado realmente foi desastroso.

Fomos presos em outubro debaixo do pau da tortura da ditadura. O esquema de repressão era recente, não tinha histórico nem conhecimento acumulado além daquilo que os antigos DOPS pudessem fornecer. Mexiam com formas de ação e com um tipo de gente diferente daquela gerada pelos dois velhos partidões. Precisavam de informações e sua única forma, de velho conhecida de pretos e de pobres e de comunistas de forma geral, era a força bruta.

Depois de uma semana de OBAN e DOPS em São Paulo nosso processo foi desenvolvido em Ribeirão mesmo, por uma certa Operação Integrada que reuniu delegados da Polícia Civil, oficiais da Força Pública incluindo o Corpo de Bombeiros e pedaço de tropa da Aeronáutica de Pirassununga. Fizeram só aquilo que sabiam fazer: bater, torturar.

Ao fim quase novecentas pessoas foram detidas e 35 tiveram decretadas suas prisões preventivas. A repressão forçou a mão, baixou o pau, não reconheceu nem doutor nem padre. Nem madre. Que entraram na dança e não tiveram dúvidas em reportar ao seu maioral, o arcebispo dom frei Felício Cezar da Cunha Vasconcellos. Que convocou o Cabido Metropolitano, dirigido por dom Angélico, para providências: os direitos humanos de cidadãos estariam sendo violados na arquidiocese. Afinal, o que estava acontecendo na cidade, com centenas de detenções?

Angélico sabia direitinho o que acontecia no quartel da Força Pública de Ribeirão. Tinha seus informantes. E foi dele a iniciativa de propor a excomunhão dos católicos conhecidos envolvidos com a repressão na cidade, decisão que teve repercussão mundial. No ano seguinte madre Maurina desembarcava na Cidade do México.

Em julho de 1971, numa sexta-feira, dia 2, a Segunda Auditoria de Guerra de São Paulo – cujo prédio abrigará, proximamente, o Museu da Luta pela Justiça – chegou ao fim de cinco dias do julgamento de quase 130 indiciados do processo 698/69. Condenou alguns poucos, inocentou a maioria dos indiciados e libertou quase todos aqueles 35 mantidos presos por quase dois anos com prisão preventiva decretada.

Na Auditoria, num intervalo do julgamento, irmã de um companheiro me diz que dom Angélico esperava por ligação telefônica minha em busca de mais uma manchete para o Diário de Notícias: era a sua maneira de dizer que tinhas esperanças de me ver em casa na semana seguinte. Fui absolvido, libertado naquela sexta-feira. E o Diário de Notícias teve a sua manchete, reproduzindo o resultado do trabalho da polícia em outubro-novembro de 1969: cinco condenados e 125 absolvidos.

Em 1987

Tínhamos combinado, eu e Maria, mãe de Helena e de Gil, que nossos filhos seriam batizados, ou passariam por qualquer rito religioso, apenas quando escolhessem este caminho. E Helena, com 9 anos, começou a tocar no assunto, incentivada pelas avós. Diziam a ela que seria uma grande festa, e uma grande felicidade, ver a netinha batizada. Helena resistiu pouco e a família saiu a campo para escolher padre e igreja.

E tanta movimentação esbarrou em muro quando veio a informação de que os pais teriam que fazer algum tipo de curso para que Helena pudesse ser batizada. Maria disse não, eu disse não. Mas a família arrumou padre amigo que se contentaria em conversar conosco. Fomos lá, igreja simpática, iluminada e um padre, santo e ingênuo, que queria nos trazer de volta para o rebanho da Santa Madre, “de onde jamais deveriam ter saído”. Eu disse que ele que não conseguira entender a situação e que procuraria o chefe dele, o bispo-auxiliar da Zona Leste de São Paulo, que, quem sabe, seria mais compreensivo.

Fomos a São Miguel Paulista num sábado de fevereiro. Dom Angélico nos esperava e estava curioso. Relatei a conversa com o funcionário dele e disse que a Igreja não queria a Helena batizada. Rimos muito, claro. Angélico pediu para conversar a sós com nossa garotinha e voltou com sua decisão: “Eu celebro o batizado da Helena onde você quiser, até em casa. E sem curso disto ou daquilo”.

Helena, motivada por festa e felicidade, ficou mais do que animada. Gil não entendia muito o que acontecia e ofereceu desenho recém-realizado para o amigo do papai. Perguntei se poderia ser ali, em São Miguel, junto ao seu povo de Deus e ele topou.

E foi assim que carregamos toda a família e alguns amigos para a periferia da cidade uns sábados depois para assistir a Angélico batizar Helena.

(*) jornalista profissional diplomado pela turma de 1975 da Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero, de São Paulo. É conselheiro da ABI desde 2020.