Anarquia militar é a herança mais grave deixada pelo bolsonarismo para Lula


15/01/2023


Por Ricardo Kotscho, no UOL

Dois fatos gravíssimos revelados pela imprensa neste final de semana sobre os atos terroristas de 8 de janeiro, em Brasília, mostram a que ponto chegou o grau de anarquia militar instaurada nos quatro anos de bolsonarismo.

“Você não vai prender pessoas aqui”: esse foi o lançamento lançado pelo general Júlio Cesar de Arruda, ao ministro da Justiça, Flávio Dino, que dera ordens ao interventor federal para a Polícia Militar do Distrito Federal desativar imediatamente o acampamento de golpistas em frente ao Quartel General do Exército, para onde eles fugiram, após o ataque aos Três Poderes, naquela fatídica noite. A notícia da desobediência foi publicada pelo jornal americano The Washington Post.

Arruda não é um general qualquer: é o comandante do Exército, que acabara por ser nomeado pelo presidente Lula. Dito e feito: rapidamente, o poderoso colocou tanques na rua para proteger o acampamento, junto com três linhas de soldados da Polícia do Exército, que barraram a entrada dos policiais.

Flávio Dino também não é um ministro qualquer: na ausência de Lula, que se encontrava em Araraquara, no interior paulista, prestando solidariedade às vitimas das enchentes, estava comandando as ações do governo federal recém-empossado, em nome do presidente, que mandou decretar intervenção na segurança pública de Brasília, após cinco horas de baderna, indisciplina e quebra de hierarquia nas tropas estaduais e federais, que transformaram a capital federal numa terra de ninguém.

Ao mesmo tempo, o ministro Alexandre de Moraes, presidente do TSE, mandou afastar o governador de Brasília e prender o secretário de Segurança Pública, que estava nos Estados Unidos, e com o comandante da Polícia Militar. Em pouco tempo, restabeleceu-se a ordem, mas as sequelas da sedição ficaram.

Pouco antes, outro general, Paulo Jorge Fernandes da Hora, foi flagrado em vídeos, também impedindo uma ação da Polícia Militar que estava prendendo os golpistas invasores do Palácio do Planalto. Ao invés de proteger o palácio presidencial, o chefe da guarda facilitou a ação dos terroristas que depredavam tudo o que encontravam pela frente. Da Hora, posicionado atrás de uma barricada feita com móveis do Planalto, gritou para os policiais que “O pessoal já está descendo”, referindo-se aos terroristas, e barrou a prisão de um detido que estava fardado. “Esse é nosso!”, comunicou.

Até hoje, ninguém explicou porque o Batalhão da Guarda Presidencial, que conta com um efetivo de 2 mil homens, foi dispensado, na véspera da invasão, de cuidar da segurança do Palácio do Planalto. Esta unidade militar é comandada pelo Exército, vinculada ao ministério da Defesa, mas é acionada pelo Gabinete de Segurança Institucional (GSI), um duplo comando que não funcionava.

Tinha muita “gente nossa”, como os militares se referem aos colegas que estiveram em parceria com os invasores, o que ficou claro para o presidente Lula quando viu que a porta principal do Palácio do Planalto, de vidro blindado, nem tinha sido quebrada pelos vândalos. “Alguém daqui abriu a porta para eles”, reclamou para os jornalistas, durante um café da manhã esta semana.

Nos dois casos, o presidente viu o tamanho do maior desafio colocado para ele, logo no início do governo: a insubordinação dos militares, que não respeitaram o poder civil, depois de quatro anos de vale-tudo no governo Bolsonaro, em que conquistaram os benefícios que desejavam, com muitas mordomias, e se julgavam os donos do Palácio do Planalto, assim como do resto do país. Esta é a pior herança deixada pelo capitão.

Após reunião com o presidente e o ministro da Defesa, José Múcio, que ficou vendido na história, os comandantes prometeram investigar e punir os militares envolvidos na tentativa de golpe militar, mas até agora só se sabe de um coronel que foi preso. Como de costume, eles mandaram recados de que ficaram desgostosos com declarações do presidente na conversa com os jornalistas.

Ora, pois, vejam meus senhores, desejavam o quê? Que o presidente batesse palmas para a atuação deles, que permitiram, durante mais de 70 dias, à organização terrorista montar acampamentos diante dos quarteis, de onde partiram para o ataque, e depois ali se refugiaram sob a proteção do comandante do Exército? Até hoje, aliás, os três não se manifestaram sobre os ataques terroristas aos Três Poderes, assim como o capitão foragido ainda não encontrou a derrota nas eleições.

Nem nos antigos filmes em branco e preto sobre repúblicas bananeiras no nosso continente, com generais de quepes altos e óculos escuros, viram-se tanto desatino e respeito pela ordem democrática. Até segunda ordem, de acordo com a Constituição, as Forças Armadas são um órgão de Estado, subordinado ao poder civil e, como tal, devem se comportar, gostem ou não. Ou vamos viver numa crise permanente no pós-bolsonarismo, que não quer largar o osso.

Como o novo governo Lula está apenas começando, ainda é tempo de colocar as coisas e cada um em seu devido lugar.

Vida que segue.