Krenak na academia multicultural


03/04/2023


“As academias de letras precisam da cosmovisão e da coragem de pensadores como Ailton Krenak”. A declaração é do entrevistado e associado da ABI, Rogério Tavares, presidente da Academia Mineira de Letras que, em seguida à posse do intelectual indígena, acaba de nomear o escritor, professor e crítico da história da literatura brasileira, Silviano Santiago. A eleição de Krenak traz a marca de um imperioso novo tempo de reconhecimento do trânsito de culturas diversas no interior das academias.

Por Alessandra Scangarelli, editora do site Intertelas exclusivo para a coluna

Neste 3 de abril, faz um mês que o escritor Ailton Krenak, da etnia indígena brasileira krenak, tomou posse na Academia Mineira de Letras. Como avalia a eleição de Ailton Krenak, que recebeu 36 dos 39 votos de seus pares?

A eleição de Ailton krenak é um gesto de reverência, de homenagem à potente cultura dos povos originários brasileiros, que precisam ser cada vez mais reconhecidos respeitados e admirados. Além disso, é também uma atitude de reconhecimento à bela literatura produzida por Ailton krenak, autor de várias obras lidas e comentadas no Brasil e no exterior, onde o autor já está em mais de 13 países. A eleição de Ayrton krenak é um avanço, é um progresso no campo das instituições culturais brasileiras, ainda muito presas a um quadro mental que precisa sintonizar-se com a contemporaneidade. Não se admitem mais instituições culturais que não vivam as dores e os dramas do seu tempo, que não atendem para a riqueza que é viver no século 21, no ano de 2023, quando o Brasil se revela cada vez mais um país multiétnico, plural, diverso, surpreendente e que deve ser valorizado na sua diversidade. Então, a eleição de Ailton krenak é isso, é um progresso, é um avanço, é uma novidade bem-vinda. Que outras academias de letras e que outros centros de pesquisa, de ensino, de cultura possam também seguir esses nossos passos. Assim, as suas instituições também vão se beneficiar do aporte cultural fundamental que os povos originários têm para oferecer ao nosso debate cultural público nos dias que correm.

O mundo acadêmico e intelectual é muito vezes questionado por ser distante do público em geral e ter dificuldades de aceitar novas ideias. O que significa a entrada de Krenak nesse ambiente de cultura acadêmica e intelectual tão diferente?

As instituições culturais acadêmicas e intelectuais que não fizerem um diálogo adequado, correto, entre a tradição e a contemporaneidade, correrão o risco do anacronismo, do ridículo, da insensibilidade e da irrelevância. Será irrelevante, será anacrônica a instituição cultural que não souber incorporar a seus quadros a riqueza do fenômeno literário, do fenômeno cultural, tal qual ela se apresenta hoje. O Brasil é um país surpreendente pela diversidade, pela variedade de acontecimentos que frequentam a realidade todos os dias. Não é possível ignorar isso! Uma instituição cultural precisa desenvolver o quê? A arte da escuta, da escuta sensível e atenta, aos dias que correm, aos dramas e as dores do mundo contemporâneo. Uma instituição cultural deve escutar mais do que falar. Deve procurar aprender mais do que ensinar. Deve procurar fazer mais perguntas do que achar ser a provedora de todas as respostas. Uma atitude básica de uma instituição cultural que se quer inteligente é a atitude da curiosidade, da genuína vontade de contatar o novo, o diferente, aquilo que merece ser pesquisado, ser desbravado. A chegada de Ailton Krenak, nesse ambiente acadêmico, faz muito bem a todos nós, a todos os integrantes da casa e ao território em que nos encontramos sediados, porque é uma eleição que tem uma consequência, que tem uma repercussão no meio social capaz de ampliar consciência. Esse é o nosso objetivo.

Krenak questiona conceitos e versões históricas estabelecidas pela academia e por nomes consagrados da intelectualidade brasileira, em diversas áreas. Como avalia esta forma de repensar o Brasil?

Não há nada mais rico que agregar ao nosso colegiado, ao grupo de acadêmicos, alguém de outra etnia. E mais, alguém de outra cosmovisão, alguém que tem uma relação diversa, diferente com o meio ambiente, com os recursos naturais, com o planeta Terra e com os chamados seres viventes, como Ailton Krenak mesmo gosta de falar. Ailton, em seus livros, veicula uma mensagem ousada, pioneira, renovadora e, sobretudo, muito contundente, que não deixa margem a dúvida. Ele é muito firme na defesa de que outro mundo é possível. Na defesa de que podemos e devemos desenvolver outros tipos de relação com planeta Terra, com os seres viventes e com os recursos naturais. Essa mensagem precisa ser difundida, divulgada aos quatro ventos, nos quatro cantos do globo. Nós precisamos questionar o modelo de desenvolvimento econômico e a sociedade que esse modelo de desenvolvimento econômico foi capaz de gerar. Essa sociedade está visivelmente ruindo. Ela não dá conta dos dramas e das crises que ela mesma acabou gerando. À visível exaustão dos recursos naturais não cabe mais nenhum tipo de contemporização. É preciso agir, e agir logo, mudando nosso modo de nos relacionar com as coisas, com as pessoas e, sobretudo, com a natureza. É necessário ter alguém com a coragem de apresentar uma cosmovisão muito distinta da nossa. Afinal, a inteligência humana se beneficia do contraditório, da oposição entre ideias e pensamentos. O ambiente de consenso, um ambiente em que ninguém discorda, é um ambiente empobrecido intelectualmente. Nós enxergamos a luz no contato com a escuridão, enxergamos o azul, percebemos o azul, no contraste com as outras cores, não é isso? Então, é muito saudável a chegada de Ailton Krenak ao nosso colegiado.

Sobre a formação da identidade brasileira e do que seria o Brasil, quais as contribuições que destacaria do pensamento de Krenak?

Não é mais possível pensar a formação de identidade brasileira sem levar em conta o pensamento dos povos originários, como o de Ailton krenak, Davi Kopenawa, Daniel Munduruku, Márcia Cambeba, Joênia Wapichana, atual presidenta da FUNAI, e Sônia Guajajara, a ministra de estado dos povos originários. A formação do povo brasileiro foi, tradicionalmente, pensada a partir de três matrizes culturais básicas: a africana, a europeia e a indígena. Isso teria dado origem a um povo, à nacionalidade que é entendida por algumas correntes mais conservadoras como uma nacionalidade sólida, homogênea e que não admite interpelações, nem contestações. O pensamento de Ailton Krenak vem para problematizar um pouco o que é o brasileiro; o que são os brasileiros; e o que é a identidade nacional. O Brasil é e continua sendo um país multiétnico. Não é um país que possa contar com uma uniformidade populacional. Nós aqui convivemos, muitas vezes de modo bastante agressivo e violento uns com os outros, com base nessa diversidade que é inegável. Com 500 anos já é possível falar um pouco dessa mistura de que somos feitos, desse amálgama, como dizia José Bonifácio, de que somos feitos. O Brasil é o resultado disso. A identidade brasileira é resultado desses atravessamentos, dessas interpenetrações, desses cruzamentos, dessa mistura. Mas, não é possível apagar a especificidade cultural dos africanos, ou dos afro-brasileiros, ou dos povos originários nativos do nosso território que aqui estavam antes do século XVI. Então, o Brasil precisa tratar do tema da identidade nacional de modo mais problematizado. O pensamento de Ailton krenak colabora muito nesse sentido. Ele afirma uma identidade própria aos povos originários. Eles desfrutam de uma cosmovisão distinta e habitam o mesmo território que todos os outros milhões de habitantes desse país. Isso tudo é preciso ser levado em conta e apenas enriquece a reflexão atual tanto da antropologia quanto da sociologia e da Ciência Política, a respeito do tema da identidade nacional.

Qual a sua avaliação do papel a ser exercido pelas academias no futuro, com gerações que exigem uma representação mais diversa do que apresenta o quadro atual?

As academias de letras não são mais o lugar do beletrismo, da distinção social e, sobretudo, da distinção de classe. As academias de letras se permanecerem como lugares de ostentação, de posição social, de exibição de currículo, serão certamente anacrônicas e irrelevantes. As academias de letras devem ser, e estão cada vez mais seguindo esse caminho, lugares de geração, de produção, de circulação e de partilha do conhecimento. Não haverá lugar para academias que não estejam em sintonia com os dramas, aflições e dores do seu mundo. Eu sempre falo uma frase e não me canso de repeti-la: a academia só fará sentido se fizer sentido para a comunidade a que ela pertence. O que é uma academia de letras? É uma reunião de pensadores, é uma reunião de amigos, é uma confraria, uma rede de sociabilidade em torno de valores civilizatórios caros à nossa chamada civilização, quais sejam, a educação, a cultura, a história, a memória, a ciência, a democracia, as letras e as artes. Por conta disso, as academias de letras têm repensado, cada vez mais, a sua forma de funcionamento, além da composição do seu quadro social, do seu quadro de acadêmicos. Por muito tempo as mulheres não tinham acesso aos quadros acadêmicos, o que é absurdo e impensável nos dias de hoje. Nós queremos academias de letras que contêm cada vez mais com mulheres, com representantes de todas as etnias, com representantes de todas as cosmovisões, identidades, trajetórias, experiências de vida, origens e estilos. Uma academia não pode fazer restrição também do ponto de vista estético. Deve haver espaço para todos, para todas as correntes de manifestação estética. Isso também é muito importante. Hoje, o cânone, pelo menos no universo da literatura, está se expandindo para abrigar vozes plurais e distintas, que antes não cabiam, não tinham espaço no cânone como ele era tradicionalmente e convencionalmente considerado. Carolina Maria de Jesus não eram do cânone da literatura brasileira até há bem pouco tempo. Hoje, ela já é uma figura canônica, importantíssima pela sua obra, pela sua personalidade e pelo que ela representou na história da nossa literatura. As pesquisas e as reflexões sobre o fenômeno literário tiveram que ser ampliadas para dar conta dessa polifonia que se manifesta sempre ao nosso redor, com insistência, lutando contra o esquecimento e o apagamento de que tantas vezes são vítimas.