Agassiz escreve à viúva de Saramago


02/08/2010


O escritor paraibano Agassiz Almeida enviou comovida mensagem de pêsames à jornalista Pilar del Rio, viúva do escritor José Saramago, que ele conheceu pessoalmente e do qual recebeu elogio por seu livro “A República das elites”. Num encontro em São Paulo, contou Agassiz, o ganhador do Prêmio Nobel de literatura lhe disse: “Como é difícil encontrar homens”.

Diz a carta de Agassiz a Pilar del Rio :


“Cara jornalista Pilar,

No dia 18 do corrente mês, um eco melancólico se distendeu pelo mundo ensombreando as inteligências livres. De onde vinha? Das Ilhas Canárias.

Abraçado à sua imensa obra, na qual desfilam geniais personagens dos contrastes da vida, tombava este gigante da literatura mundial, José Saramago.

Em torno do ser humano, com as suas angústias, dores, injustiças, muitas das quais manipuladas pelos poderosos, Saramago ergueu a sua obra, e dela emergiu o crítico mordaz contra as mazelas sociais e o joguetear opressivo da politicalha e do misticismo. 

Nos meus passos iniciais pelo mundo literário, recebi de Saramago palavras de incentivos que muito me encorajaram. Em certo dia de 2004, desperta-me mensagem vinda de Lanzarote (Canárias), na qual  ele expressava o seu estímulo ao livro A República das elites que eu acabara de lançar.

Na sua passagem pela vida, ele deixou o ruído dos fortes e jamais se vergou ante qualquer forma de opressão. Saramago encheu o século XX com grandeza, na mesma dimensão de um Lévy-Strauss, um Ernesto Sábato, um Darci Ribeiro, um Pablo Neruda, um Che Guevara. 

Transcendendo o seu enorme acervo literário, ele projetou-se como um homem-histórico e aí se fez um catalisador dos sentimentos humanos na obra criadora que nos legou e na sua visão de mundo. Assim, ele soube olhar o povo na sua marcha pelos tempos e idealizou uma humanidade como a grande pátria dos homens livres. 

Tivemos, até poucos dias diante de nós, um homem que procurou construir um mundo em que a mentira e a hipocrisia dos poderosos se calassem e uma nova ordem social se implantasse. 

Que vulto carregou tão grande utopia?! 

Perto dele, ao ouvi-lo, sentia-me um forte. Nele, tudo era simples. Vi naquele semblante a chama de uma constante e enorme indignação contra certas hordas que, em nome da democracia, assaltam e saqueiam os povos. 

Certa vez, olhando-o, pensei comigo mesmo: este homem traz consigo o sentimento do mundo e não se deixa dirigir pelos fatos e nem pelo oportunismo. Podemos assim perfilá-lo como cidadão orbis –orbi.

No seu silêncio em Lanzarote, ele marcou um mistério entre a vida e a eternidade, e dali pôde mergulhar na profundidade do Eu humano, no qual encontrou sedimentos, no fundo dos tempos, na construção de sua genial obra literária e de sua forte visão do mundo e dos homens, repelindo sempre aqueles que na posse do poder esmagam e usurpam os povos.

Veio Saramago para a vida não para repetir esse entulho de mentiras e hipocrisias que uma sociedade, em nome de uma falsa cultura e democracia, lança à face de todas as gerações. Renegou este nascer. Engrandeceu-se porque acreditou na condição humana. Ergueu-se forte e conservou-se erecto mesmo diante de graves acontecimentos. Captou a flama revolucionária do mundo e os grandes ideais da nossa época. Fez o momento histórico, antes de se fazer a História. Moveu-se construindo utopias e deixou o mito, o retorno eterno em torno de ideais. Assim varou a existência José Saramago.

Deixou a saudade de sua vida, relembrada sempre como um perpétuo encontro e reencontro de gerações.

Foi um daqueles homens fadado a fazer história. Teve sempre uma fé profunda no saber, nos valores morais, na lealdade, na justiça e respeito aos infortunados. Personagem orgulhosa de si, carregava um desprezo olímpico pelos poderosos e um carinho quase fraternal pelos desvalidos. Frente a ambos, deixou as suas pegadas nas areias do tempo. Divisava a literatura como uma força autoconsciente subjetiva de uma sociedade em permanente revolução.

Com sua indomável vocação de olhar o ser humano numa grande dimensão de liberdade, ele abraçou as grandes utopias, no pensamento criativo de sua obra e na sua visão ideológica. Plasmou os seus livros ouvindo o ruído dos povos e as angústias e dores dos desencontrados, desde as cegueiras que irrompem nas noites dos tempos ao fanatismo místico embalado em parábolas e nas transfigurações dos profetas. 

Lá, da ilha de Lanzarote, ele contemplava o céu infinito, e algo parecia lhe despertar. Era o sentimento do mundo que se manifestava naquele homem, nas suas horas interrogativas. Sentimento que nos domina e nos conduz a elucubrações. É o encontro com o Eu profundo. Ali se albergam as imprevisíveis manifestações do ser humano. Ele soube compreender os homens. Relevava as suas fraquezas, sem, no entanto, tergiversar com os pusilânimes e os réprobos morais.

Certa vez, lá em São Paulo, ele me disse: “Como é difícil encontrar homens”. 

De onde veio José Saramago? Veio de Azinhaga. Naquele meu pedaço de terra, dizia, cabe Portugal e o mundo.

Veio de Portugal, nação que numa hora fulgaz do século XVI construiu o maior império da Terra. 

Veio carregando os sonhos e quimeras da eterna juventude, que se renova de geração a geração. Veio do chão da História, no orgulho dos que almejam e fitam novos mundos. Veio na coragem e no desprendimento para a construção de uma obra revolucionária. Veio nos cânticos de Fernando Pessoa, de Castro Alves e Pablo Neruda. Veio no sonho dos idealistas de todos os tempos.

Oh, guerreiro Saramago, que grande legado deixaste à humanidade!

 Sentidas condolências, (a) Agassiz Almeida.”