Adeus ao bibliófilo José Mindlin


01/03/2010


O acadêmico José Mindlin, o maior bibliófilo do País, morreu aos 95 anos, na manhã deste domingo, dia 28, em São Paulo, no Hospital Albert Einstein, onde o corpo foi velado. Mindlin, que estava internado há um mês, sofreu falência múltipla dos órgãos e foi enterrado na tarde do mesmo dia no cemitério israelita de Vila Mariana.

Autoridades e intelectuais participaram das cerimônias, entre elas o ex-Presidente da República Fernando Henrique Cardoso, o Governador de São Paulo, José Serra, o sociólogo José Pastore e o ex-Ministro das Relações Exteriores Celso Lafer.

Em nota, o Presidente Lula lamentou a morte de José Midlin:

“Foi com muita tristeza que recebi a notícia da morte do meu amigo José Mindlin. Ele foi um grande brasileiro e motivo de orgulho para todos nós. Com seu imenso amor à cultura, sua defesa da liberdade e sua conduta empresarial, prestou serviços extraordinários ao País. E, apesar da idade, ainda tinha força e disposição para contribuir com o progresso nacional. Meus sinceros sentimentos aos familiares, amigos e admiradores de José Mindlin”, diz o comunicado.

Viúvo de Guita Mindlin, que morreu em 25 de junho de 2006, Mindlin deixa quatro filhos, netos e bisnetos.

O maior bibliófilo do País, juntamente com a mulher Guita, reuniu ao longo de oito décadas a maior coleção de livros do País, a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, considerada a mais importante coleção do gênero no Brasil formada por um particular.

O Presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL), Marcos Vilaça, decretou luto de três dias na entidade:

— Mindlin era um emblema do livro, tinha com ele uma relação orgânica. Lembro com saudade o dia em que estivemos juntos, com Evanildo Bechara, na inauguração do Museu da Língua, em São Paulo, e eu lhe fiz o convite para ingressar na Academia. Vamos sentir muito a falta dele”.

Quinto ocupante da cadeira 29 da ABL, fundada por Artur Azevedo, que escolheu Martins Pena como patrono, Midlin foi eleito em 20 de junho de 2006, na sucessão de Josué Montello, e recebido em 10 de outubro de 2006 pelo Acadêmico e escritor Alberto da Costa e Silva, que, em entrevista ao ABI Online, ressaltou os laços de amizade com o confrade:
—José Mindlin foi um desses fenômenos quase inexplicáveis. Tinha a personalidade forte, carinhosa, um amigo exemplar e que deixa uma obra fora do comum numa biblioteca das mais ricas que formou ao longo de sua vida. Tive a honra de ser amigo dele por mais de 40 anos. Sei como ele amava os livros, como ele vivia para os livros.

Coleção

Mindlin iniciou a rica coleção de livros aos 13 anos, quando comprou em um sebo o exemplar de “Discurso sobre a História Universal”, de Jacques Bossuet, em edição portuguesa do século 18. No ano seguinte, ganhou de uma tia “História do Brasil”, de Frei Vicente do Salvador.

Em entrevista ao Jornal do Colégio Bandeirantes (Jornal do Ban), aos 89 anos, Mindlin falou sobre a paixão pelos livros despertada ainda na infância:
— O Brasil era muito diferente na minha infância, não tinha tantas opções. Eu tive a chance de estudar francês, que ficou sendo minha segunda língua. Primeiro, claro, a literatura infantil. Eu era leitor de Tico-Tico, que formou diversas gerações. Havia os livros da Condessa de Ségur. Quando Monteiro Lobato surgiu, eu já era mais crescido. Então eu comecei a freqüentar sebos, o que também é um hábito muito salutar, porque nos põe em contato com coisas de outras épocas. E já aos 13 anos meu interesse por edições antigas começou, quando vi uma edição francesa impressa em Coimbra em 1740, se não me engano, e fiquei fascinado. Mais tarde aprendi que a idade do livro tem um significado muito relativo. Há muito livro antigo que não vale nada, e muito livro moderno que é excelente. Aos 15 anos lembro que comprei um livro de poesias do Machado de Assis, com dedicatória autógrafa dele. Essas coisas são apaixonantes e vão criando o requinte da bibliofilia. Aprendi o valor das primeiras edições, mas aprendi também que em alguns casos a primeira edição pode não ser a mais importante, como em “O Guarani”, de José de Alencar. E o gosto vai assim se tornando uma compulsão. Eu brinco dizendo que no meu amor aos livros há um conteúdo patológico, mas é uma patologia que faz sentir bem. E tem outra particularidade importante: é incurável. Eu procuro, nos muitos contatos que tenho com a mocidade, inocular o vírus do amor aos livros, porque uma vez inoculado está resolvido – a pessoa não se livra mais.

Oito décadas após o primeiro contato com a literatura, Mindlin reuniu um conjunto de livros e manuscritos de cerca de 40 mil volumes, entre obras de literatura brasileira e portuguesa, relatos de viajantes, manuscritos históricos e literários (originais e provas tipográficas), periódicos, livros científicos e didáticos, iconografia (estampas e álbuns ilustrados) e livros de artista(gravuras). Entre as raridades, as primeiras edições de “O Guarany”, de José de Alencar, “Os Lusíadas”, de Luís de Camões, e originais de títulos como “Olhai os Lírios do Campo”, de Érico Veríssimo.

Em 2006, Mindlin e a mulher Guita doaram o acervo à Universidade de São Paulo(Usp), que criou a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM), ligada à Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária.

—Ele era o símbolo do livro. Eu costumava dizer que ele era o ‘homem-livro’. Nós perdemos um grande homem, disse em entrevista ao ABI Online José Salles Neto, Fundador da Confraria dos Bibliófilos do Brasil, em 1995.

Hábito

Ao longo de sua trajetória, Mindlin escreveu “Uma vida entre livros: reencontros com o tempo” (1997), “Memórias esparsas de uma biblioteca” (2004) e “Destaques da Biblioteca InDisciplinada de Guita e José Mindlin” (2006). No primeiro narra com detalhes o amor pela literatura e incentiva a formação do hábito ainda na infância.
—Para quem começar a ler agora, não vou dar conselho, nem dizer o que deve ser feito, mas posso contar o que eu fiz: eu li autores brasileiros. Quem está começando pode ler, por exemplo, contos do Machado de Assis ou “Menino de Engenho”, de José Lins do Rego. Textos mais difíceis, creio, deve-se deixar para mais tarde, quando o hábito já for corrente. Tudo depende dos pais também, se eles lêem ou não – porque assim podem orientar a criança, sublinhou Mindlin ao Jornal do Ban.

Entre seus autores preferidos, listava Balzac, Tolstói, Cervantes, Sterne e Virginia Woolf , ressaltando, contudo, que o leitor deve se guiar sempre pelo prazer.

—Com Mindlin desapareceu um dos maiores amigos do livro brasileiro que ele reunira em sua coleção 20 mil títulos e agora estão doados à Usp. Ele tem o título muito honroso de “guardião dos livros”, tinha um amor total por eles, pois havia sido infectado pelo vírus dos livros impressos que ele amou perdidamente durante seus 95 anos de idade. Foi sobretudo um acadêmico correto, dedicado e capaz, que vinha todas as semanas de São Paulo para as nossas reuniões às quintas-feiras. Nós, seus colegas, desconfiávamos que após a morte da sua querida mulher, Guita, ele começou a morrer um pouco porque era imenso o amor entre os dois. Ele costumava confessar que sem ela a sua biblioteca não conseguiria organizar-se, sublinhou ao ABI Online Murilo Melo Filho, jornalista e imortal.

João Grandino Rodas, reitor da USP, também destacou o papel relevante de Midlin no cenário da cultura nacional:
— Ele é um exemplo multifacetário de brasileiro. Intelectual primoroso preocupado não unicamente com o seu próprio aperfeiçoamento, mas também com a disseminação da cultura entre os seus concidadãos. Empresário de visão e de sucesso, obteve respeito nacional e internacional. Democrata intransigente e firme, mas sem radicalismos. Sua virtude principal, entretanto, foi cultivar a bonomia, a simplicidade e a abertura para com o próximo. Isso fez dele uma pessoa ímpar, que encantava os que dele se aproximavam.

Segundo Rodas, um prédio de 20 mil metros quadrados está sendo construído na Cidade Universitária, Zona Oeste de São Paulo, para abrigar a Biblioteca Brasiliana Usp. O projeto acadêmico deverá reunir a Brasiliana Digital, que vai disponibilizar em formato digital o acervo Mindlin e outros da USP; o Centro Guita Mindlin, de conservação e restauro de livro e papel; e ainda o Centro de Estudos do Livro, dedicado à história e estudo da imprensa, do livro e das práticas da leitura.
—Para a comunidade uspiana, além da valiosíssima Biblioteca Brasiliana, Mindlin deixou o mandato de juntar tradição e modernidade: restaurar e guardar os livros, digitalizando-os para permitir acesso a todos. O maior monumento à sua memória será, paulatinamente, digitalizar todo o acervo bibliográfico e documental da Usp, passível de sê-lo, para maximizar a pesquisa, coibir o plágio e, mesmo, para o mero deleite intelectual.

Biografia

José Ephim Mindlin nasceu em São Paulo em 8 de setembro de 1914. Formou-se em Direito em 1936, pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Foi redator de O Estado de S. Paulo de 1930 a 1934. Advogou até 1950, quando foi um dos fundadores e presidente da empresa Metal Leve S/A, pioneira em pesquisa e desenvolvimento tecnológico. Em sua atividade empresarial desenvolveu grande esforço para o avanço tecnológico no País e no processo de exportação de produtos manufaturados brasileiros.

Mindlin foi membro do Conselho Superior da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo-Fapesp, de 1973 a 1974, e de 1975 a 1976, diretor do Conselho de Tecnologia da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo-Fiesp, e Secretário da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, quando estruturou a carreira de pesquisador. Fez parte do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia-CNPq, do Instituto de Pesquisa Tecnológica, e da Comissão Nacional de Tecnologia da Presidência da República, entre outras entidades.

O bibliófilo recebeu ainda diversas premiações, entre elas, em 2003, o Prêmio Unesco Categoria Cultura; a Medalha do Conhecimento concedida pelo Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior; Prêmio João Ribeiro da Academia Brasileira de Letras; e, em 1998, o Prêmio Juca Pato como Intelectual do Ano. 

(*) Colaboração de Daiana Castro