A origem do mês da História negra nos EUA


17/02/2023


Por Vânia Penha-Lopes, Ph.D. Professora Titular de Sociologia Bloomfield College, em Nova Jérsei, EUA e da Comissão de Igualdade Étnico-Racial da ABI

Nos EUA, o mês de fevereiro é dedicado à história afro-americana. O texto abaixo é uma tradução do texto que escrevi há um ano, em inglês, sobre a origem dessa comemoração. A versão em português também se encontra em Racismo Lá e Cá: 60 Crônicas, que lancei no finzinho de 2020 (https://hotmart.com/product/racismo-la-e-ca-60-cronicas/W45023407O).

Há uns 15 anos, um aluno de ascendência dominicana proclamou durante uma aula: “Acho que é racista ter um Mês da História Negra. Por que os negros deveriam ter um mês quando não existe Mês da História Branca?”

Expliquei a ele e à turma inteira que a comemoração de afro-americanos nasceu da necessidade de destacar suas muitas contribuições a um país que, durante séculos, havia negado o seu valor. Não me recordo se disse ao aluno que também havia um Mês da Herança Hispânica, mas Iembro que não lhe respondi cinicamente que qualquer mês do ano poderia se chamar Mês da História Branca.

O dia 1.o de fevereiro marca o começo do Mês da História Negra nos Estados Unidos. A idéia para essa comemoração veio do Dr. Carter G. Woodson (1875-1950), o primeiro negro a se formar doutor em História na Universidade Harvard (tendo antes se formado na prestigiosa Universidade de Chicago), com a precoce idade de 27 anos. Acredito que seria justo dizer que o Dr. Woodson foi pioneiro nos estudos da diáspora africana se considerarmos que ele se concentrou no estudo das contribuições dos negros à sociedade. Seus muitos êxitos acadêmicos incluem a fundação, em 1916, do Journal of Negro History, ainda em circulação sob o nome Journal of African American History, e a publicação de mais de 15 livros sobre o tópico. Por todos os seus feitos, o Dr. Woodson é considerado o Pai da História Negra.

A dedicação do Dr. Woodson ao estudo da história afro-americana tinha um propósito bem prático: informar ao país o quanto devia aos africanos escravizados e a seus descendentes. Foi nesse espírito que, em 1926, ele sugeriu a criação de uma “Semana da História Negra” – a segunda semana de fevereiro, quando Abraham Lincoln e Frederick Douglass haviam nascido. O Dr. Woodson sabia e nós sabemos que os seres humanos, principalmente as crianças, precisam desenvolver sua auto-estima a fim de serem bem sucedidos na vida. É muito difícil conseguir isso se tudo o que ouvimos sobre o nosso grupo é fracasso. Precisamos conhecer nossa história para nos fortalecermos contra palavras e atos cujo fim é nos derrubar.

Não nos esqueçamos que, naquela época, já fazia três décadas que a Suprema Corte dos EUA tinha estabelecido a segregação racial legal em todo o território, comumente chamada de “a doutrina dos separados, mas iguais”. Só que a separação racial não tinha nada de “igual”. As crianças negras no Sul, quando estudavam, eram rotineiramente arrancadas das escolas à época da colheita para labutar na lavoura juntamente com suas famílias. A maioria dos negros era analfabeta; os que conseguiam estudar, não raro, eram contratados para empregos aquém de suas qualificações. Os negros eram proibidos de votar por intermédio de todo tipo de subterfúgios; quem desafiasse aquela norma se arriscava a pagar com a própria vida. Os negros era aterrorizados pela Ku Klux Klan, uma associação fundada por brancos sulistas pobres que temiam competir economicamente com os ex-escravos, que operava com a bênção ou pelo menos a vista grossa das autoridades, muitas das quais eram membros do Klan. Por fim, os negros – homens, mulheres e crianças – eram linchados com impunidade, já que o linchamento não era crime. Em suma, a decisão da Suprema Corte foi uma decisão racista posta em prática social, econômica e politicamente durante 58 anos; quando foi cancelada em 1954 por outra decisão da Suprema Corte, continuou a ser praticada de fato. O que sustenta a prática é a ideologia segundo a qual os africanos e seus descendentes não são totalmente humanos e, por isso, são menos inteligentes e menos merecedores da proverbial “fatia da torta”. O mês de fevereiro se tornou o Mês da História Negra somente em 1970, quando o movimento pelos direitos civis se radicalizou, graças aos esforços dos corpos discente e docente da Universidade Estadual Kent. O país inteiro começou a comemorá-lo em 1976. Quanto ao Mês da História Hispânica, também começou com uma semana em 1968, criada pelo Presidente Johnson; foi elevada a um mês inteiro 20 anos depois, durante o mandato do Presidente Reagan.

Pelo menos durante o mês mais curto do ano, poderíamos nos lembrar que é impossível compreender os Estados Unidos sem tudo o que os negros/pessoas de cor/pretos/afro-americanos/africano-americanos fizeram para construí-lo. Refiro-me às suas contribuições físicas (pessoas escravizadas construíram a Casa Branca, por exemplo) e a tudo que o país lhes deve culturalmente, não só na arte e nos esportes: um médico negro descobriu o fator Rh sanguíneo; um cientista negro projetou o sinal de trânsito; um físico negro possibilitou a Edison inventar a lâmpada; um inventor negro fez o país inteiro comer pasta de amendoim. O Mês da História Negra é para nós – não somente as crianças em idade escolar – fazermos um Google dos nomes deles todos e de tantos outros. Como 2020 é um ano bissexto, temos mais um dia para fazer isso.

Concluindo, sou uma Woodson fellow. Passei 1996-98 no Instituto Carter G. Woodson para Estudos Afro-americanos e africanos, localizado na Universidade de Virgínia. Foi aquela bolsa que me permitiu terminar minha tese de doutorado e começar minha carreira profissional e, por isso, sou grata e tenho orgulho.