A história da censura no Estadão


13/04/2009


Capítulo nefasto da história do País, a ditadura militar de 64, sob a égide da censura e o fim dos direitos à liberdade de expressão e ao acesso à informação, impôs restrições severas à imprensa nacional.

Em 13 de dezembro de 1968, a edição do Estado de S. Paulo foi apreendida a partir da decisão de seu diretor e proprietário Júlio de Mesquita Filho de não excluir da seção “Notas e Informações” o editorial “Instituições em Frangalhos”. Embora submetido à pressão do regime e à presença constante de censores na redação, o Estadão, ao contrário de outros jornais brasileiros, não adotou a autocensura.

Nos espaços das matérias censuradas, o Estadão passou a publicar versos de “Os Lusíadas”, de Luís de Camões; e o Jornal da Tarde, receitas de doces e bolos. A estratégia deu visibilidade mundial à publicação, que, em 1974 recebeu o Prêmio Pena de Ouro da Liberdade, conferido pela Federação Internacional de Editores de Jornais.

  Edição apreendida 13/12/68

Vencedor de importantes premiações, como o Esso de Jornalismo, o jornalista e escritor José Maria Mayrink, que acumula mais de quarenta anos de carreira — grande parte dela no Estadão —, testemunhou os fatos e decidiu registrá-los em livro ricamente ilustrado com fotos, charges, e reproduções das matérias censuradas.
— Escrevi “Mordaça no Estadão” como uma reportagem especial, cumprindo uma pauta da redação. O editor executivo Ilan Kow perguntou se eu poderia trabalhar nesse tema, para transformar em livro o que o Estadão tinha em seus arquivos. O principal material consistia nos dois volumes de “Relatórios da Censura”, compilados e organizados por José Alfredo Vidigal Pontes, curador do Acervo Cultural do jornal. Eles reúnem bilhetes, relatos e transcrições de documentos feitos pelos secretários gráficos, remetidos diariamente ao editor-chefe e aos diretores do Estado e do Jornal da Tarde. Uma espécie de crônica sobre a censura nos dois jornais, com a descrição pormenorizada da ação dos censores e da reação da direção, especialmente de Julio de Mesquita Neto e de Ruy Mesquita, proprietários dos jornais.

José Maria Mayrink

O objetivo da publicação, segundo o autor, é resgatar a história da censura nos jornais da família Mesquita, e mostrar como o Governo militar amordaçou a imprensa:
— Foi um trabalho de reportagem. Ouvi mais de 40 pessoas, na maioria jornalistas do Estado e do Jornal da Tarde. Alguns deles continuam na empresa, mas muitos saíram para outras atividades há mais de 30 anos. Esses depoimentos, feitos em entrevistas pessoais ou por telefone, foram importantíssimos para a reconstituição dos fatos. Fiz quatro viagens — a Campinas, Brasília, Rio de Janeiro e Recife — para ouvir alguns dos principais depoimentos.
 
Paralelamente, consultei os arquivos do jornal, no Centro de Documentação e Informação. Dali sairam as reproduções de páginas censuradas que compõem o último dos nove capítulos do livro. As fotos, em grande parte, foram localizadas nos arquivos do jornal, mas recorremos a outras fontes também, no caso de fotos pessoais, de personagens. Também trabalhei muito em casa, especialmente na fase de redação do texto.

                            Antonio Carvalho Mendes

A minuciosa pesquisa foi realizada ao longo de mais de dois meses, entre 3 de maio e 23 de julho de 2008. A idéia inicial, explica José Maria Mayrink, era lançar o livro na Bienal Internacional do Livro, em agosto do mesmo ano, em São Paulo:
— Não deu tempo para isso, mas foi até bom, porque tivemos a oportunidade de fazer uma revisão mais acurada. Além do jornalista Carmo Chagas, responsável pela edição do texto, participaram deste trabalho a equipe da editora digital A2, colegas do Centro de Documentação e Informação, o editor executivo Ilan Kow e outros companheiros aos quais recorri na medida do necessário.

 Carlos Garcia

Tensão

A obra detalha, entre outros episódios, os bastidores do Estadão na noite da edição do Ato Institucional nº 5, e revela o clima de tensão e a postura dos repórteres, do redator chefe Oliveiros S. Ferreira, de Julio de Mesquita Neto e Ruy Mesquita:
— Em seu conjunto, esses personagens, entre outros que se somam a eles na narrativa, constituem a barreira do Estadão e do Jornal da Tarde contra a censura. Tiveram destaque também as ações das sucursais de Brasília e do Rio de Janeiro. Quando o Estadão resolveu publicar algo mais marcante e contínuo para caracterizar a censura, o mérito foi do redator Antônio Carvalho Mendes, que sugeriu a reprodução de versos de “Os Lusíadas”, de Camões. O Estado chegou a publicar poemas de outros autores, mas Camões marcou aquele período.

O testemunho do jornalista pernambucano Carlos Garcia, na opinião de Mayrink, é um dos trechos mais tocantes do livro. Garcia chefiava a sucursal do Estadão em Recife (PE), quando foi preso e torturado, em março de 1974, na véspera da posse do General Ernesto Geisel à Presidente da República:
— O depoimento que gravei com Garcia, e que foi transcrito na íntegra, tem uma força impressionante. Ele foi detido e interrogado por agentes da repressão de um quartel do Recife. Na mesma linha, o depoimento de Luiz Paulo Costa, correspondente em São José dos Campos (SP), que foi preso em sua cidade e levado para as dependências do DOI-Codi, em 1975, em São Paulo, onde, na mesma semana, o jornalista Vladimir Herzog tinha sido torturado e morto. 

Coragem

                                 Maurício Azêdo

Com apresentação de José Alfredo Vidigal Pontes e introdução de Marcus Guterman, “Mordaça no Estadão” resgata a participação de dezenas de jornalistas na luta contra a censura, como Villas-Bôas Corrêa, Teixeira Heizer, Fernando Gabeira, Mário Cunha, Maurício Azêdo, Presidente da ABI.
— Conheci Maurício no segundo semestre de 1968, quando ele e eu saímos do Rio para São Paulo. Trabalhávamos na Editora Abril, que estava lançando a revista Veja e tinha já a revista Realidade. Mais tarde, Maurício trabalhou na sucursal do Rio, enquanto eu trabalhava no Jornal da Tarde, em São Paulo.

 O Estado de S.Paulo 14/12/1968

O período compreendido entre 1968 e 1975, mais focado no livro — embora as dificuldades da imprensa tenham começado já em 1964 e se estendido até depois de 1978, quando acabou o AI-5 — exigiu muita coragem da imprensa e muita criatividade dos jornalistas, sublinha Mayrink:
— A imprensa era tecnologicamente menos desenvolvida, o que exigia uma ginástica tremenda para a transmissão das matérias. Telex era a última palavra, pois nem fax existia, muito menos computador. O telefone, então, era uma tragédia. Muita coisa evoluiu nos últimos anos, mas o importante é salientar a luta da imprensa e dos jornalistas contra a arbitrariedade do regime ditatorial. Agora, trabalha-se com liberdade, sem medo da polícia e sem o controle da censura. Se ainda ocorrem arbitrariedades, a imprensa pode denunciá-las.

Mayrink destaca o resgate histórico da atuação da censura como a grande lição da obra, que, nas palavras de Ricardo Gandour, Diretor de Conteúdo do Grupo Estado, representa importante contribuição à memória do País, especialmente para as novas gerações e para a preservação dos valores da liberdade de expressão.
— Julio de Mesquita Neto previu que isso viria a ocorrer, ao recomendar aos editores e secretários gráficos, em dezembro de 1972, que todo o material censurado fosse arquivado, pois as matérias vetadas seriam reaproveitadas no futuro. Essa recomendação consta de um bilhete do secretário-gráfico Allen Dupré, que está reproduzida na última página do livro, conclui o autor.