A “conversa fiada” de Manuel Bandeira


13/06/2008


Manuel Bandeira

“Aqui o que faço é conversa fiada”, costumava resumir Manuel Bandeira sobre sua atividade como cronista, função na qual se autodeclarava “Manoel-vai-com-os-outros”. Restrita há até pouco tempo a pesquisadores, “a conversa fiada”, ou melhor, a prosa do escritor e poeta desenvolvida para a imprensa encontra-se agora disponível para o público em “Crônicas inéditas I”.

Resultado de anos de trabalho de garimpo de Júlio Castañon Guimarães, o livro apresenta 113 textos ilustrados por fotos, capas de revistas, programas de espetáculos, desenhos, pinturas e outras imagens, que por 70 anos permaneceram encerrados em bibliotecas e outras instituições. Poeta, tradutor e pesquisador na área de Filologia da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, Júlio assina a organização, o posfácio e as notas de “Crônicas inéditas I”.

O pernambucano Manoel Carneiro de Souza Bandeira Filho (1886-1968) lançou o primeiro livro (“As cinzas das horas”) em 1917. A seguir, publicou “Carnaval” (1919) e “O ritmo dissoluto” (1924). Com “Libertinagem”, de 1930, sagrou-se um dos mais importantes escritores do modernismo brasileiro. Nessa fase, colaborava com revistas literárias e também com a grande imprensa, escrevendo sobre diversos assuntos, especialmente na área cultural. Entre os veículos estavam as revistas Árvore Nova, Para Todos, Ilustrações Brasileiras e Brasil Musical e os jornais A Província, do Recife — onde ele dizia ter pegado “o jeito provinciano de conversar” —, e o Diário Nacional, de São Paulo.

Em 1937, Bandeira reuniu os textos publicados na imprensa no livro “Crônicas da Província do Brasil”, reeditado em 2006, pela editora Cosac Naify. Em 1957, foi lançada a segunda coletânea de crônicas, intitulada “Flauta de papel”. Na década de 60 — mais precisamente em 1966 — foi a vez de “Andorinha, andorinha”. Contudo, um grande volume de textos continuou inédito e disperso:
— A partir de um outro trabalho que fiz sobre Manuel Bandeira para a mesma editora, iniciei a busca das crônicas inéditas em livro. Fui a várias bibliotecas para reunir o material que estava disperso, muitas vezes danificado, de difícil leitura e acessibilidade — conta Júlio.

Visionário 

Música, teatro, cinema, arquitetura, literatura, moda, dança e artes plásticas são temas presentes nos textos de Bandeira, que revelam um panorama do Rio de Janeiro — à época em processo de urbanização — e traçam o perfil da sociedade brasileira na primeira metade do século XX, desenhado pelo autor com espírito crítico e até mesmo poético. Entre os episódios, o primeiro arranha-céu e os personagens pitorescos da boemia da cidade, a febre do primeiro concurso de Miss Brasil e o sucesso do cinema falado:
— De modo mais geral, várias das questões abordadas têm a ver com as concepções que orientam a criação poética de Bandeira. Independentemente de sua opinião de crítico, seus textos têm sempre grande interesse — diz o organizador da obra.

Vanguardista e visionário, Bandeira também anunciava em seus textos jovens talentos que se revelavam no País, como Cícero Dias, Carlos Drummond de Andrade e Lúcio Costa:
— A longo prazo, sem dúvida ele contribuiu para a divulgação de importantes autores e obras e para que algumas questões fossem debatidas — afirma Júlio, que anuncia já o lançamento de um segundo volume de crônicas em 2009. — Na próxima edição, eu destaco a série de textos sobre artes plásticas. Bandeira acompanhou as exposições realizadas no Rio na década de 40.

Veja aqui alguns trechos das crônicas:
 

Concurso de Miss em 1929

A primeira Miss Brasil

“Mlle. Olga Bergamini não é uma beleza de tipo impressionante — sob esse aspecto Miss Espírito Santo lhe leva vantagem. Nenhum dos seus traços possui caráter de exceção. Todos, porém, são regulares e se combinam de maneira harmoniosíssima. É pequena, delicada, de porte e modos modestos e naturais. Foi assim que ela passou de pé no seu automóvel, vestida num tailleur cor de cinza, os cabelos escondidos pelo chapeuzinho colante, agradecendo com ar muito simples as palmas e os beijos e as flores que lhe jogavam.”

Saudades dos telefones do Recife 

  Mesa telefônica na antiga Estação Norte do Rio

“Nunca vi uma telefonista. Há quem diga que são mocinhas dignas de simpatia. Pode ser. A minha experiência pessoal me faz imaginar não uma criatura humana, gente como nós, mas um monstrozinho, em que entra muito de mulher, certamente, mas de mistura com outros elementos de essência implacável. (…) Tenho sofrido tanto pelas demoras, pelas ligações erradas, pelas comunicações interrompidas, pela abertura da linha, que não podendo mais, apliquei a receita de Goethe e fiz da minha dor um poema.” 

O carnaval carioca, mesmo com chuva

“O hall e bar do Palace, por exemplo, é um ponto que intermitentemente assume aspectos divertidos. Ali se juntam os exemplares mais disparatados da sociedade: a menina de olhos ingênuos, prostitutas, artistas, o chefe de polícia, cocainômanos e canalhas, políticos. A alegria é provocada por meia dúzia de rapazes que beberam demais e circulam de copo na mão, cantando, dançando e dizendo à direita e à esquerda bestidades engraçadas. Cheira-se o éter à vontade.”

O sonho de ser arquiteto

“A doença me reduziu à condição de poeta: ora, era arquiteto que eu pretendia ser. (…) Até no Brasil já se pode pensar em morar, não atrás de uma fachada, mas dentro de uma casa de verdade, planejada de acordo com os elementos e os hábitos de conforto da atualidade.” (citando as casas de Warchavchik, em São Paulo) 

Casa-grande do engenho Megaípe Muribeca

Pobreza de idéias em Pernambuco

“João Lopes de Siqueira Santos, usineiro riquíssimo, atual senhor de Megaípe, acaba de mandar botar abaixo a mais linda das nossas relíquias rurais do século XVII. Pensar-se que o senhor Siqueira Santos pertence a uma velha linhagem de senhores de engenho! (…) O senhor João Lopes de Siqueira Santos não é sensível a estas coisas. Com todas as suas usinas, ele é agora o homem mais pobre de Pernambuco.”

Cinema nacional 

“Enquanto o teatro nacional está que morre-não-morre, o nosso cinema está que nasce-não-nasce. Há dez anos as tentativas se renovam com empresas que penosamente se organizam, dão um filme e morrem. (…) Até agora, porém, os filmes nacionais tinham fracassado miseravelmente no conjunto e em cada um dos seus detalhes. O trabalho fotográfico era péssimo, revelando a ignorância completa do tratamento da luz sempre igual, de um branco odiosamente cru, e picada de relâmpagos; a intriga inconsistente enxertava-se de cenas que embaraçavam o fio da ação; os artistas. não sabiam representar nem vestir-se; as legendas… meu Deus, as legendas! (…) Não tem dúvida, o público brasileiro, que tão dificilmente dá ambiente para outras formas de arte, como por exemplo a música sinfônica e de câmara, assiste cheio de interesse à formação do cinema nacional.” 

Cena do filme “Barro humano”, de 29

Exposição de Lasar Segall

“Pintura: eis a atualidade mais considerável da vida artística do Rio nestes últimos dias. As exposições se sucedem. Neste momento umas quatro ou cinco atraem aos respectivos salões uma multidão de visitantes. (…) É dessa categoria privilegiada o pintor russo Lasar Segall, que pela primeira vez expõe no Rio. A sua exposição tem importância capital para nós, pois se trata de nome considerado na Europa como um dos grandes mestres do movimento moderno. Se não fosse a circunstância de haver o artista contraído matrimônio numa família estrangeira habitualmente residindo em São Paulo, é certo que não teríamos nunca a oportunidade de conhecer-lhe a obra, como nos acontece em relação aos outros mestres europeus. Os Picasso, os Lhote, os De Chirico, cujas criações só nos chegam em reproduções gráficas.”

Um dos grandes poetas do Brasil

“O poeta é mineiro e deve andar pelos 30 anos. Antes da renovação modernista fizera versos medidos e rimados, creio que naquela cor desmaiada de Samain que aqui chamaram penumbrista. Agora o poeta comparece em livro. E esse livro nos revela, logo ao primeiro exame, um dos mais puros e belos da nossa poesia. Não pode haver dúvida: Carlos Drummond de Andrade é um dos grandes poetas do Brasil. Grande pelo fundo de sensibilidade e lirismo como grande pela técnica impecável de seus poemas.”

Cascadura ou Paris, tudo serve 

                                     Heitor Villa-Lobos

“Villa-Lobos acaba de chegar de Paris. Quem chega de Paris espera-se que venha cheio de Paris. Entretanto Villa-Lobos chegou de lá cheio de Villa-Lobos. A ardente fé, a vontade tenaz, a fecunda capacidade de trabalho que o caracterizam renovam a cada momento em torno dele aquela atmosfera de egotismo tão propícia às criações verdadeiramente pessoais. A maioria dos artistas estrangeiros que vão a Paris estudar ou trabalhar, quase nada logram fazer nos primeiros tempos, se é verdadeiro o depoimento de muitos deles. Fica-lhes a sensibilidade como que desnorteada pelo tumulto de todo um mundo novo de sensações. A sensibilidade de Villa-Lobos, porém, resistiu ao choque traumático Paris. Lá ele é o mesmo Villa-Lobos que seria se vivesse toda a sua vida em Cascadura. Cascadura ou Paris, tudo serve.” 

Ópera no estádio do Fluminense

“De todas as formas musicais a ópera é o que mais agrada à população carioca. As temporadas líricas despertam sempre muita animação e, apesar dos preços caríssimos, o Municipal se enche nas récitas de assinatura. Os que estão à frente da campanha em prol da Casa do Estudante contaram com esse gosto do público e organizaram um espetáculo belíssimo no estádio do Fluminense. Esperavam levantar uma fortuna.”