A ditadura militar usou bombas de napalm na Guerrilha do Araguaia


11/06/2013


O jornalista Alcyr Cavalcanti comenta as descobertas da Comissão Nacional da Verdade.

“A Comissão da Verdade, criada pela Lei nº 12.528/2011 e instalada em 16 de maio de 2012, tem cumprido sua finalidade, apesar da resistência de setores conservadores interessados em esconder uma página sangrenta de nossa Historia, que deveria ser apurada até as últimas conseqüências, para que as violações de direitos humanos nunca mais se repitam. Centenas ou milhares de documentos foram destruídos, corpos desapareceram, mães e filhos ficaram sem poder cumprir o sagrado ritual do sepultamento, e até hoje choram pelos seus mortos. Aos poucos, em um trabalho firme e constante, após um ano, os membros da Comissão começam a desvendar as atrocidades de uma época que mergulhou o País em trevas e sofrimento.

A Comissão usou o poder de convocar pessoas para a tomada de depoimentos fazendo valer sua autoridade. O não atendimento a uma convocação pode responsabilizar a pessoa convocada por crime de desobediência ou à condução coercitiva do depoente. As tomadas de depoimentos são etapas essenciais para a realização de seus objetivos por meio de audiências publicas, ou em alguns casos de depoimentos reservados. Já foram realizadas 15 audiências publicas em nove Unidades da Federação – Goiás, Distrito Federal, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Pará, Paraná, Pernambuco, Rio Grande do Sul e São Paulo, onde foram coletados depoimentos de 268 pessoas, incluindo 37 agentes da repressão, sendo de grande repercussão a convocação do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, denunciado pelo Ministério Publico  Federal de São Paulo por ocultação de cadáver. Brilhante Ustra, comandante do Doi-Codi-SP durante o período militar, foi acusado de ter ocultado o cadáver do estudante de medicina Hirohaki Torigo em janeiro de 1972. Hirohaki pertencia aos quadros da Ação Libertadora Nacional-ALN e foi sepultado clandestinamente no cemitério de Perus, em São Paulo, depois de sofrer torturas no Doi-Codi. Sua família soube de sua morte pelo noticiário de televisão com a versão de “morte em tiroteio” divulgada pelas autoridades somente 15 dias depois.

Documentos que restaram começam a esclarecer o papel do Estado, que usou força desproporcional, torturando e executando sumariamente os opositores ao regime, como na Guerrilha do Araguaia, que “promoveu uma eliminação sumária e total” dos militantes do PCdoB. O relatório do Tenente-Coronel Flarys Guedes de Araújo, em 1972, revela que foram feitos bombardeios na região do Araguaia com bombas de napalm. O conselheiro da Comissão da Verdade Claudio Fonteles, em relatório apresentado, afirma  que o napalm foi usado em pelo menos três operações, apesar do número desproporcional entre as partes. Havia 2.453 militares contra 57 militantes, o que comprova a eliminação sumária, e não meros “exercícios de adestramento”, como afirmava o General Antônio Bandeira, comandante da operação. Fonteles conduz pesquisa baseada em 16 milhões de documentos secretos da ditadura oriundos do Serviço Nacional de Informações-SNI e do Serviço de Informações da Aeronáutica-Cisa.

A ditadura também estendeu seus tentáculos contra educadores. Livros foram queimados, professores foram perseguidos, torturados e mortos. O número de professores demitidos em razão da política ainda é desconhecido. Estima-se que pelo menos 26 educadores estão entre os mortos e desaparecidos pela repressão. Causou surpresa a divulgação de vários centros de tortura, entre eles o da Universidade Federal Rural, em Seropédica, no Estado do Rio de Janeiro, hoje um pólo de desenvolvimento científico.

Claudio Fonteles defendeu a criação de um Centro de Memória no quartel da Policia do Exército na Rua Barão de Mesquita, na Tijuca, onde funcionava em seu anexo o Destacamento de Operações e Informações do 1º Exército-Doi, núcleo principal de torturas no Rio de Janeiro. Fonteles declarou em recente programa na Globonews que o Deputado Rubens Beirodt Paiva foi assassinado dentro das salas do Doi na unidade militar. Ele figura na lista dos desaparecidos.

O coordenador da CNV Paulo Sérgio Pinheiro declarou que o relatório elaborado vai permitir uma futura investigação judicial com a finalidade de responsabilizar os agentes de Estado na estrutura repressiva, para derrubar a impunidade que prevalece ainda nos dias de hoje, apesar de o Supremo Tribunal Federal ter se manifestado contra a revisão da Lei da Anistia. Os agentes de Estado não realizavam as operações em um simples ato de vontade, mas obedeciam a uma politica repressiva que era usada como forma de manter o controle social, impedindo qualquer forma de contestação. As ordens vinham de escalões superiores.

A sociedade brasileira acompanha e confia nos trabalhos da CNV e acredita que a verdade virá a público como esclarecimento a toda a sociedade dos milhares de arbitrariedades cometidas durante o regime militar, para que essas atrocidades nunca mais venham a se repetir.”

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Alcyr Cavalcanti, jornalista e antropólogo, é Diretor de Jornalismo da ABI e membro da Comissão de Direitos Humanos da Casa. Texto publicado originalmente no jornal eletrônico Algo a dizer.